Pontualmente às 14h, o Papai Noel B.V., que prefere não ter o nome revelado, assume seu trono em um shopping de Santos, no litoral de São Paulo, após passar cerca de meia hora para se arrumar. Ao sair da escola onde leciona para crianças pela manhã, ele segue ao seu posto, mas antes, passa pelas entradas do shopping descaracterizado, e vai até seu camarim, no quarto andar do prédio. É lá que a magia começa a acontecer.
O ator deixa sua vida lá fora, desacelera, e começa a entrar no personagem, enquanto coloca o enchimento para a barriga do Noel, bem como sua roupa característica vermelha com detalhes em banco. "Eu preciso estar tranquilo para receber as crianças, os adultos, os cachorros, pets. Eu tenho que estar bem", explica.
Dentro da sala em que se prepara, ele coloca a barba longa e branca, o bigode que chega a enrolar nas pontas, e antes de posicionar os cabelos encaracolados, a campainha toca. Então, o professor abre a porta, se escondendo atrás dela, pois não pode ser visto por qualquer pessoa de fora enquanto se caracteriza. O motivo? "Para não perder a magia", afirma.
Depois de posicionar os cabelos e a toquinha vermelha, é a hora de colocar os demais acessórios. Assim que o homem de 58 anos, que não aparenta ter mais de 45 anos, coloca os óculos ovais no rosto, é como se o Papai Noel estivesse encarnado ali.
Seu rosto parece que ganha linhas de expressões que marcam o quanto o tempo passou, e a impressão é de que se está diante de uma pessoa que conhece a vida toda. É como um encontro com o passado, com a infância. De fato, naquela sala, estava o verdadeiro Papai Noel.
Enquanto caminha em direção ao elevador que o leva para primeiro piso do Miramar Shopping, onde fica seu trono, o ator precisa passar por uma porta que tem o reconhecimento facial para liberar o acesso, e pasmem: o leitor o reconhece como o Bom Velhinho.
35 anos como Noel
A história de B.V. como o mais famoso personagem natalino começa em 1988, quando vestiu pela primeira vez a roupa do bom velhinho, ao ser contratado por uma empresa. "É uma consequência do meu trabalho de ator. Eu sou ator desde muito jovem e aí surgiu o convite. Geralmente, era um funcionário que se vestia, mas eles não estavam contentes. E foi assim que eu comecei a primeira vez de Papai Noel”, relembra.
Quase dez anos depois, ele foi chamado para uma atividade com as crianças no shopping onde atua hoje, e, a partir disso, surgiu o convite para participar das festividades do Natal. Desde lá, ele só deixou de trabalhar nessa época dentro do estabelecimento por três anos, e com isso, soma mais de 23 natais, levando alegria para crianças, adultos e até pets.
B.V. encara mesmo o personagem, que é inspirado no bispo São Nicolau, criado no século IV por Nicolau Taumaturgo. Em sigilo, ele colocava um saco com moedas de ouro na chaminé das casas dos mais necessitados na época do Natal.
"Eu gosto de pesquisar quem é o personagem, a lenda, as histórias, o porquê que ele distribui o presente. Agora, o resultado é o personagem, talvez, o mais difícil. Eu fui aprendendo que o Papai Noel é muito maior que todos nós. Muito maior do que qualquer personagem que eu já tenha feito. Porque ele é real, né? As pessoas não vão ali ver um personagem, uma cena, uma história. Eles vão conversar com uma pessoa", confessa.
O Bom Velhinho também o ajudou a superar os próprios limites. Em 2005, ele precisou se aventurar e descer de rapel do último andar do shopping, mesmo muitos duvidando de sua capacidade. "Desci com o shopping lotado, minha esposa grávida na plateia, quase que a bebê nasceu porque ela ficou nervosa, assim como a minha mãe. Mas eu estava me divertindo muito."
Viver a magia do Natal é ainda uma fonte de renda extra importante para esse artista autônomo. "Papai Noel me ajuda a ter o meu 13º de artista", acrescenta ele.
A troca ao longo dos anos
O ator classifica o personagem como uma mistura de psicólogo com um tio mais velho e brincalhão. Psicólogo porque ouve desabafos e angústia de quem pega a fila para vê-lo, sobretudo os adultos. Já o tio brincalhão leva alegria para aqueles que buscam por um abraço sincero e amoroso, além de escutar o pedido do presente. Nessa, todo mundo ganha, inclusive B.V..
"Eu dou muito carinho, dou muita alegria para as pessoas, mas eu sou um só. E todo mundo devolve isso para mim. A volta dos abraços, dos sorrisos, das crianças, eu saio ganhando", relata emocionado.
Ao longo desses anos, encontra vez ou outra crianças que já cresceram, seja para renovar as fotos antigas ou para levar seus filhos para entregar cartinhas com pedidos de presentes. Nem sempre os pedidos vêm cheios de alegria. Por vezes, eles vêm carregados de uma angústia, que só um abraço caloroso pode acalmar.
"Tem alguns que a gente tem que dar colo, colo sério, e não para uma foto. Ontem, uma moça adulta chegou para mim e perguntou se eu lembrava dela do ano passado. Eu lembrava dela, mas não lembrava do fato. Ela falou: ‘Então, Papai Noel, lembra que eu vim aqui só pedir um abraço pra você? Que a minha mãe tinha acabado de falecer’. Eu perguntei se ela estava bem, e ela falou que quem faleceu neste ano foi o marido. Eu dei outro abraço nela. Então, eu tenho que também ter forças para não titubear nessa hora. Eu sou ombro, sou carinho", conta.
Como Papai Noel, o ator também cresceu como pessoa. Embora seu trabalho ao longo do ano como professor e contador de histórias exija que ele seja doador de atenção e o faça mais humano, foi como Bom Velhinho que ele aprendeu a ouvir mais, compreender mais e ter maior compaixão.
Pedidos emocionantes
O trabalho do personagem natalino começa em meados de novembro, e segue até o dia 24 de dezembro, quando ele é contratado também para encarnar o Papai Noel em natais particulares. Em dias mais movimentados no shopping, geralmente aos finais de semana e feriados, ele chega a atender mais de 400 pessoas.
Os pedidos são os mais variados, desde os mais tradicionais como bonecas, bolas, carrinhos, até os mais tecnológicos, como celulares e tabletes. Mas aqueles que não são objetos são os que mais comovem B.V., que relata o fato com olhos marejados.
“Teve uma vez que um menino que estava todo quietinho na fila veio falar comigo. Ele pediu assim: 'Papai Noel, eu gostaria que você tirasse o meu pai da cadeia'. Eu não questionei nada, claro. Era o pai dele que estava preso. Eu o abracei, falei que em breve o pai dele ia estar com ele, que ele poderia abraçar o pai de novo", relembra. No ano seguinte, o garoto voltou para agradecer o pedido concedido.
Amor pelo que faz
A família do ator e professor já está acostumada com a rotina e também entra na brincadeira. A esposa dele é Mamãe Noel na noite da véspera, por exemplo. Ele também já foi o Papai Noel da própria filha, até ela crescer. "Fazer a figura do Papai Noel continuar com a magia para a minha filha em casa, que se manteve acessa até os 10 anos", conta ele, que alega ter precisado mudar a voz e esconder muito bem todos os acessórios.
Os familiares entendem a profissão e apoiam a paixão de B.V. pelo período, que é uma época de relembrar o verdadeiro espírito natalino: o amor em forma de ação, generosidade e compaixão.
"Fazer os outros felizes não tem preço. Eu digo que para ser Papai Noel tem que acreditar em Papai Noel. Não é só se vestir. Tem que acreditar que existe."