"Trabalhar mais para ganhar mínimo de sobrevivência", diz pesquisador da USP sobre mercado

Doutor em Saúde Pública e médico, René Mendes coordena grupo que estuda impactos na saúde dos trabalhadores

6 mai 2024 - 05h00
Foto: Reprodução: Redes Sociais

As novas relações de trabalho, consolidadas e aceleradas especialmente durante a pandemia de COVID-19, aliadas à flexibilização das leis trabalhistas recentes, têm causado impactos significativos na saúde dos trabalhadores. A análise é feita pelo doutor em Saúde Pública e médico René Mendes, que coordena o Grupo de Estudos sobre os Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e a Saúde da Classe Trabalhadora.

O grupo foi criado em março deste ano, justamente com o objetivo de estudar e dar visibilidade a esses novos problemas que ameaçam a vida e a saúde da classe trabalhadora. Um deles é a falsa promessa de autonomia, oferecida pelos formatos de trabalho que ascenderam de 2021 para cá, como ocorre com os entregadores de aplicativos e os motoristas de transporte individual. 

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"É um falso empreendedorismo, uma falta de autonomia que, na verdade, faz com que se trabalhe cada vez mais e se ganhe cada vez menos, isso tudo sem proteção social", acrescenta. 

Mendes destaca a necessidade de regulamentar as novas relações de trabalho, para garantir proteção social e assegurar direitos aos trabalhadores, a fim de mitigar os impactos na saúde desse grupo. Confira a entrevista completa a seguir!

O senhor é coordenador de um grupo de estudos que se debruça sobre as mudanças no trabalho e o impacto delas sobre a saúde dos trabalhadores. O que o senhor já observou ao longo da sua carreira, até hoje, que motivou a criação do grupo?

Tem havido uma crescente preocupação da sociedade com novas formatações do trabalho, principalmente aquelas que ficaram mais visíveis durante a pandemia. Quando todos nós passamos a utilizar, por exemplo, os aplicativos de delivery, ficou evidente o fenômeno de crescimento da população de trabalhadores e trabalhadoras que utilizam as plataformas de aplicativos como forma de trabalho. Os entregadores de delivery são um exemplo. A classe trabalhadora está cada vez mais adoecida por causa desse tipo de trabalho.

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É isso que nós chamamos de novas morfologias do trabalho. Eu propus que a Universidade de São Paulo passasse a incluir esses impactos sobre a vida e saúde dos trabalhadores. A complexidade desses impactos necessita ou exige uma abordagem multidisciplinar ou interdisciplinar, interprofissional. Esse florescimento deste modelo fez com que nós criássemos este projeto. Então, é uma espécie de uma bandeira, uma estaca, um marco para chamar atenção a um problema atual grave.

Uma das principais mudanças que vemos hoje é a flexibilização das relações e dos direitos trabalhistas, desde o surgimento de aplicativos de serviços, como Uber, iFood, entre outros. Como o senhor analisa esse momento?

Essas novas relações de trabalho, como disse, se consolidaram na pandemia, mas permaneceram e avançaram com a reforma trabalhista. A reforma, ao flexibilizar os direitos trabalhistas, tornou os trabalhadores avulsos, isolados. Então, eles acabaram enganados por uma proposta chamada empreendedorismo: cada um é autônomo e empreendedor. Esse discurso encontrou nesse momento um ambiente muito favorável para descaracterizar as relações de trabalho.

A reforma trabalhista de 2017 ainda procura desmanchar, vamos dizer assim, a solidariedade e a unidade dos trabalhadores. Também desmantelou os sindicatos, as classes, as categorias que organizam a classe trabalhadora. No caso, essa dispersão tornou cada trabalhador avulso, independente, fazendo com que trabalhem cada vez mais e ganhem, na verdade, muito pouco, sem proteção social.

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Vou dar só um exemplo: na medida em que você coloca três encomendas para serem entregues no mesmo percurso e paga só uma por ela para o entregador, mas a empresa recebe os três valores que ela cobra, configura-se claramente equações perversas.

É um falso empreendedorismo, uma falta de autonomia que, na verdade, faz com que se trabalhe cada vez mais e se ganhe cada vez menos, isso tudo sem proteção social.

É possível manter a estrutura de trabalho atual sem causar tantos danos à saúde dos profissionais?

Existem iniciativas em outros países, e estamos no começo também aqui no Brasil, com alguns modelos de cooperativa ou desenvolvimento de algoritmos de controle pelos próprios trabalhadores. Por exemplo, para que eles possam ter mais controle sobre as horas em que ficam à disposição, que são as horas não pagas.

Outra iniciativa é a regulamentação, por exemplo, de ter pontos de apoio, postos de apoio nos percursos que fazem. Isso permite que eles possam ir a um banheiro ou comer alguma coisa, enfim, descansarem, em vez de sempre estarem em situação de marginalidade nas calçadas ou nos lugares onde ficam provisoriamente, às vezes, ao relento. Também deveriam existir controles, por exemplo, em relação à duração da jornada.

Quais patologias o senhor identifica como aquelas que mais atingem os trabalhadores? 

Hoje, de uma forma geral, o perfil de adoecimento da classe trabalhadora poderia ser resumido em dois grandes blocos. O primeiro bloco são as chamadas patologias ou doenças do desgaste ou da alta performance, da intensificação do trabalho, onde entra o burnout e a fadiga.

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O segundo bloco são as relacionadas aos desgastes mentais e à intensificação do trabalho, chamadas de doenças da solidão. São as doenças que estão incidindo hoje sobre esquemas de trabalho onde se desmancharam, se desestruturaram intencionalmente os laços de solidariedade, de pertencimento e de coletivo. Está ocorrendo uma individualização das tarefas, inclusive de formas disfarçadas, como o trabalho remoto.

Essas doenças da solidão, portanto, são essencialmente as doenças depressivas. Ou seja, os transtornos mentais de natureza depressiva, como depressão grave ou leve, que culminam com o suicídio.

O que contribrui para esse quadro? Seriam as novas relações de trabalho? 

A intensificação do trabalho é hoje uma das características mais típicas e perversas de adoecimento dos trabalhadores. É trabalhar mais e ganhar menos, ou seja, trabalhar mais para poder ganhar um mínimo de sobrevivência. Isso está caracterizado nessas novas relações de trabalho que falei.

Então, junta-se trabalhar na rua, em ambientes abertos, sujeitos a todas as intempéries, sujeitos a acidentes, sujeitos a assaltos, a expressões de violência, somado a um esquema que vai exigindo velocidades maiores e maior número de entregas por tempo, em relações como aquelas de entregas de comida ou aquelas de 'uberização'. Essas características presentes nessas relações de trabalho fomentam esse quadro de adoecimento.

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Nessas novas relações de trabalho, são feitas cobranças, são utilizadas estratégias de humilhação e cobranças de metas impossíveis. Essas pessoas não aguentam. Então, esta combinação das novas formatações, sejam aparentemente mais visíveis, como eu mencionei os entregadores de comida, sejam os modelos hoje de organização do trabalho baseados em gestão remota, ambas são formas de cobrar o trabalho, metas, produtividade, produção, alcance de determinadas notas em aplicativos. A produtividade exigida faz com que as pessoas estejam descompensadas e adoeçam, quando não se suicidam. Tudo isso sem proteção social.

Na prática, são menos trabalhadores, mais sobrecarga de trabalho, mais cobranças, demissões, substituição de três pessoas por uma, por exemplo, desqualificação dos trabalhadores. É isso que temos hoje nessas novas relações e que adoecem os trabalhadores.

Como o senhor avalia a atuação do governo federal sobre o tema? Em sua avaliação, quais medidas o governo deveria adotar?

Havia muita expectativa, agora chegando ao governo Lula, muita expectativa de reversão, por exemplo, da reforma trabalhista, da reforma previdenciária e de outros ataques que foram feitos de retirada de direitos sociais, especificamente no campo do trabalho e da previdência. O problema é que a maior parte destes retrocessos ocorridos nos últimos anos se deu na casa legislativa, no Congresso, e também no Judiciário. Fica pouca margem para o Executivo.

O prognóstico do curto e médio prazo é muito sombrio. A pergunta é: vai mudar? Há pouca margem de mudança, mas a força das mudanças estaria, vamos dizer assim, na sociedade. Nós apostamos que mais pessoas, mais movimentos sociais se conscientizem sobre a importância dos trabalhadores, das trabalhadoras e de seus direitos, sua saúde, sua segurança em termos de emprego e segurança também no sentido físico, e que são os trabalhadores.

Segundo a OMS, depressão e ansiedade atingem cada vez mais trabalhadores. O que contribrui para esse quadro ?

Isso é impulsionado por esse modelo das novas relações que desvaloriza o trabalho e o trabalhador, e gera políticas de austeridade, políticas de redução dos investimentos sociais e da geração de empregos produtivos, na medida em que você está valorizando cada vez mais a terceirização, a precarização, a mecanização e a robotização. Então, essa ameaça de perda de postos de trabalho, ameaça de perda de emprego... De fato, aí ocorre precarização e, com isso, também, aumento de uma faixa não só do desemprego explícito, que continua sendo grande no mundo inteiro e aumentando, como também, desse limbo de direitos e de sobrevivência num contexto em que as pessoas ainda vivem, quer dizer, a classe trabalhadora.

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Fonte: Redação Terra
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