A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) quer utilizar o ChatGPT, ferramenta de inteligência artificial (IA), no processo de elaboração de aulas. O projeto, que veio a público na última semana, foi questionado pelo Ministério Público e criticado pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
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A Seduc-SP garante que planeja implementar um "projeto-piloto" em que a IA passe a ser utilizada em uma das etapas do processo de atualização e aprimoramento de aulas já no terceiro bimestre deste ano. A iniciativa contemplaria os anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) e do Ensino Médio.
Atualmente, a rede estadual conta com 90 professores curriculistas, que são os responsáveis pela elaboração dos materiais usados em sala de aula. A partir disso, segundo a secretaria, aulas que já foram produzidas por esses profissionais e que já estão em uso deverão ser "aprimoradas" pela IA.
Segundo a pasta, a tecnologia deverá inserir novas propostas de atividades, exemplos de aplicação prática do conhecimento e informações adicionais que enriqueçam as explicações de conceitos-chave de cada aula. Mas esse material será avaliado e editado em duas etapas pelos professores. Também está prevista uma fase de revisão de direitos aurtorais e design.
"Se essa aula estiver de acordo com os padrões pedagógicos, será disponibilizada como versão atualizada das aulas feitas em 2023", assegura a Seduc-SP.
Apesar de o próximo bimestre estar próximo, a pasta informou que não há previsão para a tecnologia começar a ser utilizada, e que o fluxo editorial descrito ainda será testado. Por meio de telefonema, foi informado à reportagem que a ideia não partiu de um estudo prévio, nem de recomendação preliminar. Também não foram dadas explicações sobre o que motivou o projeto, quais seus objetivos, nem quem foi o responsável pela ideia.
No último dia 18, o Ministério Público questionou o secretário da Educação, Renato Feder, sobre como, especificamente, será o uso do ChatGPT para a elaboração do conteúdo. Também foi questionada a finalidade pedagógica que o governo busca satisfazer, e os estudos ou pesquisas usados como base para a proposta.
O MP também questionou evidências científicas ou experiências bem-sucedidas a respeito do uso de ferramenta para esse fim e, diante das mudanças na rotina de elaboração do material didático, se foi ou será contratada empresa para prestar serviços à Secretaria de Educação para o cumprimento dessa diretriz -- qual o nome da pessoa jurídica contratada.
O Terra procurou o Ministério Público, mas o órgão não informou se a Seduc-SP emitiu parecer sobre as questões. A reportagem também acionou o Ministério da Educação sobre o projeto. A pasta federal afirmou que as secretarias de Educação têm autonomia e independência, e não há nenhuma diretriz superior com relação ao uso da inteligência artificial na elaboração de materiais didáticos.
Professores foram consultados?
Em nome da categoria, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) disse não ter sido consultado sobre a utilização de inteligência artificial no processo de elaboração de materiais. Em posicionamento enviado à reportagem, a entidade de classe afirmou: "Não houve qualquer diálogo com os professores".
Segundo o sindicato, os professores curriculistas da rede apenas foram notificados sobre o então projeto-piloto.
"Consideramos essa decisão absurda e irresponsável, que representa uma nova e grave tentativa de precarização dos profissionais da Educação e um ataque aos direitos dos estudantes", afirmou a Apeoesp, que avalia risco de demissões dos professores.
"Os recursos gastos nesse tipo de inovação questionável bem poderiam ser revertidos em valorização salarial dos professores", sugere.
Apesar de o sindicato afirmar que o projeto tem como objetivo substituir professores pelo ChatGPT, a Seduc-SP frisa que o projeto não se trata disso.
Quais os limites?
O pesquisador Walter Goya, que é consultor em tecnologias educacionais pelo Transformative Learning Technologies Lab, membro do Laboratório de Sustentabilidade da USP e colaborador do Instituto Catalisador, avalia que a inteligência artificial não irá substituir o professor - seja na sala de aula, ou no desenvolvimento de planos de aula.
"Temos que tomar muito cuidado [com a inteligência artificial] porque nem os próprios desenvolvedores sabem como é que funciona. Já temos questões aprovadas de viés no ChatGPT, dependendo de como você o alimenta. Com dados enviesados, você pode estar propagando mais preconceito, discriminação… E aí, imagina isso acontecendo num currículo, em uma sequência didática que está sendo desenvolvida para as crianças?", provoca Walter Goya.
A ressalva, no entanto, não significa que a ferramenta não possa ser útil, se for usada com parcimônia. Ele cita, por exemplo, que o ChatGPT é bom para correções ortográficas, o que pode agilizar as tarefas de professores ou prestar algum tipo de suporte.
Na criação de sequências didáticas com referências, no entanto, a inteligência artificial pode inventar as fontes, o que é chamado de "alucinação da inteligência artificial".
"As pessoas acham que tecnologia é neutra. Mas, na verdade, não. Porque quem usa a ferramenta, quem a desenvolve, pode acabar, até que de forma inconsciente, influenciando no resultado final dos produtos – seja uma sequência didática, uma aula, uma atividade ou assim por diante", explica.
Por mais que não "condene cegamente" o uso do ChatGPT, o especialista alerta que ter a ferramenta para gerar a base de algo na educação – como, por exemplo, quais tópicos do currículo serão abordados em alguma aula –, pode ser perigoso.
Bons usos da IA
"Todo professor que puder ser substituído por uma tecnologia, deve ser substituído por uma tecnologia". Foi a frase, de autoria do cientista da computação e teórico educacional indiano Sugata Mitra, que veio à mente de Idelfranio Moreira, gerente de ensino e inovação da SAS Educação, quando a reportagem o questionou sobre os limites da utilização da IA na educação.
Para ele, a frase evidencia que em lugares onde o "professor não chega" e há possibilidade de aplicar algum recurso tecnológico para levar o ensino a pelo menos um aluno, essa substituição deve ser feita. Isso não significa, no entanto, que os professores perderão seus postos para a tecnologia, nem que são descartáveis.
O caminho ideal, para ele, é que os professores não deixem de se atualizar com relação às novas tecnologias, porque elas também podem auxiliar em funções que facilitem sua rotina.
"Eu posso usar, lá na ponta, a inteligência artificial para, por exemplo, adaptar um conteúdo para um caso de educação inclusiva, tornar um conteúdo acessível. Ou eu posso utilizar o ChatGPT para ler o meu conteúdo, produzir um resumo dele para eu estudar, gerar perguntas para organizar um roteiro de estudo...", sugere.
O gestor compara a IA a um "copiloto" do professor, em que o educador deve sempre seguir no comando. O 'limite', para ele, está no propósito.
"Importa para você se a resposta do ChatGPT é completamente correta ou não? Se não importa, então use o ChatGPT, porque você sabe que ele vai produzir coisa errada. Agora, importa para você que esteja correto? E você tem expertise para analisar a resposta do ChatGPT? Se você não tem, não use", acrescenta.