Um gari de Ramos (RJ) foi convidado para palestrar no Brazil Conference de Harvard e MIT, neste final de semana. Ele superou a infância difícil e hoje dá visibilidade para carreira ainda invisibilizada.
Um gari de uma escola municipal em Ramos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi convidado para palestrar em uma conferência da Universidade de Harvard e Massachusetts Institute of Technology (MIT), duas das mais prestigiadas universidades do mundo. De acordo com Valdeci de Souza Boareto, de 55 anos, essa é a primeira vez que irá viajar de avião e está bastante animado.
O convite para palestrar em Cambridge, nos Estados Unidos, é fruto do trabalho que passou a desenvolver nos últimos quatro anos, em paralelo com a limpeza na escola: escrever. Valdeci é o autor do livro 'Comportamento que te salva - A vida sob o olhar de um gari que só quer respeito', no qual compartilha com o mundo o que viveu da infância até a maturidade.
Ele lembra, empolgado, como recebeu a notícia de que foi selecionado para a conferência.
"A princípio eu estava aqui sentado na sala, tranquilo, vendo um filme. E, de repente, eu me lembro como se fosse hoje, a Giovana, que é uma pessoa que trabalha lá, falou assim: 'O senhor foi escolhido", conta.
A reação imediata foi achar que se tratava de um trote, mas o comitê que organiza a conferência notou seu envolvimento com a população e o conteúdo do livro, e foi aí que sua ficha caiu.
"O coração começou a abrir, eu comecei a sentir uma alegria. Daqui a pouco, me apresentou a turma, me apresentou o grupo, foi indo e aí a ficha caiu. Falei assim: 'Realmente eu estou indo para os Estados Unidos'", acrescenta. "Meu Deus, isso nem passava na minha cabeça. Isso é uma coisa muito forte para uma pessoa pobre. É difícil a gente viajar dentro do Rio de Janeiro, ainda mais sair do Brasil".
"Vendia a parte que sobrava pra comprar arroz"
A atenção e reconhecimento que Valdeci experimenta hoje em nada se compara com o que viveu na infância. De origem pobre, o gari e escritor passou dificuldades até mesmo para comer.
"A minha vida de infância foi muito difícil. De chegar ao ponto de a mamãe bater nas minhas costas e falar: 'Filho, vai dormir, vai descansar um pouco, porque o sono alimenta', comenta ele, que procurava comida na Xepa do Ceasa do Rio de Janeiro.
"Comecei a pegar frutas e legumes. Às vezes metade estava podre, a outra metade estava boa. A gente comia e eu ainda vendia a parte que sobrava para comprar arroz. Comecei a ter responsabilidade com os meus 7 anos de idade", relembra.
Segundo ele, apesar das dificuldades, não deixou de almejar uma vida melhor e reconhecimento para ele e pessoas que passam pela mesma situação.
"Eu quero trazer a visão da população do mundo para essas pessoas, porque essas pessoas são dignas de respeito. Acho que os valores estão sendo trocados e, nas minhas palestras, eu ensino isso", acrescenta.
O próximo passo de Valdeci é lançar um livro sobre sua experiência como gari e o trabalho com o ensino infantil. A obra já tem enredo, personagem e até ideias de ilustrações.
"Coloquei a experiência que tenho no colégio, que são uns 12 anos mais ou menos, e pensei: 'Poxa, se o meu apelido era Toddy, por que não criar o garizinho Toddy?'. Ele vai ensinar as crianças, tudo no desenho, as boas maneiras", disse, animado.
Brazil Conference em Harvard e MIT
O Brazil Conference em Harvard e no MIT vai acontecer neste final de semana, no sábado, 6, e domingo, 7, em Cambridge (EUA). Esta será a 10ª edição do evento, que é realizado pela comunidade brasileira nos Estados Unidos. Além de Valdeci Boareto, a conferência também irá receber outras figuras importantes para a cultura, ciência e política do País.
Entre os palestrantes estão Edilene Lobo, a primeira mulher negra a integrar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Lutana Kokama, líder da maior comunidade indígena em um centro urbano no Brasil, em Manaus; Ernesto Batista Mané Júnior, paraibano reconhecido como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo na área de política e governança; Reginaldo Lima, morador do Complexo do Alemão que aprendeu a ler no lixo e se tornou pensador na favela; e Arthur Abrantes, o primeiro brasileiro negro a se formar em Harvard.