"Os diretores eram analfabetos". O relato feito por Amaury Gomes, diretor-presidente da Escola de Formação Permanente do Magistério e Gestão Educacional (Esfapege), parece algo distante da atual realidade da cidade de Sobral (Ceará), que lidera o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no Brasil.
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Com cerca de 210 mil habitantes, o município localizado no interior do Ceará virou exemplo para o ensino do País nos últimos anos. Em 2005, a cidade tinha avaliação de 6,6 (entre cidades com mais de 50 mil habitantes) e 3,5 (cidades com mais de 60 mil), respectivamente, nos rankings de anos iniciais e finais do ensino fundamental do Ideb.
Em 2021, no entanto, a evolução foi observada nos indicadores: 8,0 e 6,6, nas respectivas classificações. Ao mesmo tempo, 83,56% dos alunos sobralenses atingiram nível adequado de leitura até o final do 3º ano, segundo dados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA-2016).
Um dos motivos dessa mudança na educação do município cearense é a Política de Formação Continuada de Professores, que tem justamente a Esfapege, comandada por Gomes, como um de seus pilares. Inaugurada em 2006, a escola tem a função de, por meio de materiais, estudos e trocas de ideias, manter os professores de escolas municipais de ensino fundamental em constante aprendizado e atualização, tornando as aulas mais dinâmicas e eficientes.
Herbert Lima, secretário de Educação da cidade, explica a importância dessa política para a evolução do município, que tem 64 escolas, 31.820 alunos e 1.428 docentes.
"A formação continuada é um eixo fundamental dentro da política educacional de Sobral, principalmente na garantia da organização da rotina de sala de aula, definindo de maneira bem clara quais são as habilidades que vão ser trabalhadas pelo professor, quais as estratégias ou metodologias que ele pode adquirir. A Escola de Formação é a estrutura da política de formação continuada sustentável, permanente. Já existe há mais de 15 anos como uma política permanente no município", diz.
O que é a Escola de Formação de Professores
O projeto surgiu da necessidade de capacitação de professores recém-formados. Conforme brincou Amaury Gomes em conversa com a reportagem, havia a sensação de que os docentes entravam em outro universo ao trocarem a teoria da universidade pela prática da sala de aula.
"A gente começou a perceber que esse professor tinha um grande hiato entre o que ele trazia como conhecimento teórico, que é importantíssimo e fundamental para a formação, com a realidade, com o chão da sala de aula", diz Amaury. "Então, assim, a escola de formação trata exatamente do 'lançar encantamento' na aula. Para a população sobralense, é um espaço estratégico da política educacional".
Inicialmente, a escola focava em professores de anos iniciais, ou seja, os professores alfabetizadores. Paulatina e cautelosamente, ele acrescenta, a Esfapege ampliou o público das aulas até se tornar referência para outras cidades.
O dia a dia dos professores que estudam
Na Formação Continuada, os professores municipais dividem a rotina de aprendizado em duas partes, além do tempo lecionando em sala de aula. Uma vez ao mês, eles vão à Esfapege para o contato com a equipe técnica. Em outras três semanas, as trocas de ideias continuam em encontros dentro da própria escola onde trabalham.
Um dos participantes deste processo é o professor Adalberto Araújo, que dá aulas de Língua Portuguesa. O docente de 31 anos atua na rede municipal há 12, e também viveu o outro lado da moeda, como aluno em Sobral. Em conversa com o Terra, ele reconhece a importância do projeto e destaca a troca de metodologias entre os profissionais.
"A formação de professor acaba me dando possibilidades de enriquecer mais ainda as minhas metodologias em sala de aula. Eu acho que o diferencial é exatamente essa troca de experiências, onde a gente tem a possibilidade de aprender com outro colega. Tem um momento lá na formação que é interessantíssimo; para mim, acho que a melhor parte da formação, que é, por exemplo, professores de tal escola são sorteados, e aí vão trazer exemplos de metodologias para repassar para a gente", conta Adalberto.
Outro ponto de destaque da política é que o tempo de aprendizagem não conflita com a jornada de trabalho. Cerca de 4% da carga horária dos docentes é destinada exclusivamente para formação e planejamento. Para que os alunos não sintam a ausência dos professores nesses períodos, o município providencia substitutos para os dias que os titulares vão à escola de formação. Os professores que estudam têm ônibus à disposição para facilitar a locomoção ao centro de formação.
Na Formação Continuada, os docentes são avaliados em duas perspectivas. Na primeira, ocorre o acompanhamento do desenvolvimento dos estudantes, o que indiretamente demonstra se o aprendizado dos professores está dando resultado. Além dessa, há uma avaliação feita ao fim de cada ano letivo por diretores e coordenadores pedagógicos.
Parte do sucesso da Formação Continuada também se deve à sintonia da Esfapege, que é uma organização de natureza privada sem fins lucrativos, com a prefeitura de Sobral, conforme explica Gomes. Um exemplo da atuação conjunta das partes, são os materiais didáticos desenvolvidos pela Esfapege e que passam por avaliação da secretaria da Educação, antes de chegar às mãos dos professores.
Apesar do alinhamento, Gomes entende que a política educacional de Formação de Professores deve ser vista como algo a nível de Estado, independentemente do partido e governante que esteja no poder.
"A política educacional de Sobral nasceu há quase três décadas. Então, por exemplo, a gente pensa uma política pública a nível de Estado, e não de governo. Em quase 30 anos, passaram diversos gestores, e a política se manteve, vem se consolidando, entende? É importante a não descontinuidade do processo em detrimento à mudança de gestão", destaca.
Devido ao sucesso da Esfapege, Amaury Gomes conta que já recebeu propostas para levar o projeto a outras cidades. A ideia, no entanto, não foi adiante por causa da dedicação necessária à educação de Sobral. Ele esclarece o quanto a "régua" de sobral é exigente.
"A régua -- vou chamar de régua -- da secretaria de Educação, a régua de exigência, é num nível bem, bem elevado, como deve ser, né?", admite.
Apesar de não levar a escola de formação continuada a outros lugares, Gomes conta que mensalmente a cidade de Sobral realiza um seminário para apresentar a ideia a municípios interessados no projeto. Acontece toda última quinta e sexta-feira do mês.
"Vários municípios das cinco regiões do Brasil visitam Sobral. É um seminário de imersão. Neste seminário, a gente escuta, a gente troca saberes, mas a gente também recebe muitos convites para fazer", acrescenta.
Medidas além da Esfapege
Além de liderar indicadores do Ideb, Sobral investe R$ 1.210,80 a menos que a média nacional, que é de R$ 5.535,80. Segundo dados referentes ao Valor Aluno/Ano Total (VAAT) de 2019, o município investe anualmente R$ 4.325 por aluno.
Segundo o secretário da Educação, Herbert Lima, a política de Formação Continuada entra nesta conta, representando cerca de R$ 15 milhões do total investido na pasta. Essa quantia financia a Esfapege, materiais didáticos para os docentes e despesas com os professores, como transporte e alimentação em dias de curso.
"São R$ 15 milhões anuais que financiam a Escola de Formação de Professores. Esse recurso serve para remunerar os professores formadores e toda a equipe técnica, e, também, para alimentação durante o processo de formação, o transporte e deslocamento de professores, reprodução e aquisição de materiais didáticos para a formação. Então, todo esse valor de investimento é destinado para essas despesas", detalha.
Junto com a política de Formação Continuada e a Esfapage, Herbert Lima e Amaury Gomes citam outro ponto para a evolução da educação em Sobral: troca na forma de seleção dos dos diretores escolares. A tradicional escolha por convite deu lugar à seleção meritocrática, através de provas e avaliações.
Até hoje, segundo dados do Relatório de Política Educacional, lançado em 2023 e produzido em parceria entre Dados para Um Debate Democrático na Educação (D³e), a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e Todos Pela Educação, cerca de 54,9% dos diretores do País são escolhidos por indicação.
Para Gomes, essa mudança foi um marco para a evolução da educação em Sobral. Conforme relembrou o diretor-presidente da Esfapege, houve uma época em que alguns gestores escolares sequer eram alfabetizados em Sobral.
"O critério de escolha era muito político. Então, essa mudança de concepção, para mim, causou uma ruptura. Por que eu 'tô' dizendo isso? Porque eu era professor de sala de aula na época. Há mais de 30 anos, quando você olhava para diretores de escola, onde os diretores eram convidados, escolhidos politicamente para o cargo. [Os diretores] eram, na sua grande maioria, analfabetos. Os caras iam receber o salário e tinham que assinar com o polegar, cara, naquela almofada de tinta. Tem noção de um negócio desse? Era o diretor, era o diretor de escola", relatou Gomes.
Herbert Lima, por sua vez, mencionou que, apesar de não ser ilegal, a mudança da indicação por convite para processos meritocráticos foi fundamental para a evolução da educação sobralense.
"Há 20 anos, por exemplo, Sobral teve o entendimento de que os cargos em comissão não seriam convidados. Ele abriu mão, porque é uma prerrogativa do Executivo, de convidar os cargos em comissão. Isso não é ilegal, é prerrogativa. Então, o que que aconteceu? O chefe do Executivo disse: 'Não, eu quero selecionar meritocraticamente quem vai dirigir às escolas'. Isso fez uma diferença incrível", completou o secretário.