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Diziam que não podia usar o elevador, diz ex-cotista sobre lutas para concluir ensino superior

Estudantes e ex-alunos revelam situações de menosprezo por condição financeira, raça ou intelectuais

28 nov 2024 - 06h58
Resumo
Frases de estudantes de direito da PUC-SP contra alunos da USP viralizaram, chamando atenção para a discriminação de cotistas. Benefício da Lei de Cotas é essencial, mas alunos enfrentam discriminação e desafios na adaptação e no auxílio.
Embora o benefício seja uma das melhores oportunidades para democratizar o acesso à educação superior desde que foi estabelecido, a sociedade ainda engatinha em outros quesitos tão igualmente necessários para o cotista.
Embora o benefício seja uma das melhores oportunidades para democratizar o acesso à educação superior desde que foi estabelecido, a sociedade ainda engatinha em outros quesitos tão igualmente necessários para o cotista.
Foto: Reprodução/Getty Images

Frases entoadas por estudantes de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) contra alunos da Universidade de São Paulo (USP) viralizaram na última semana (17). Entre as principais provocações proferidas durante uma partida de handebol, as que mais chamaram a atenção dizem respeito à situação socioeconômica dos colegas.

Enquanto faziam sinais de dinheiro com as mãos, os estudantes da instituição privada gritavam “pobres” e “cotistas”.  O caso chamou atenção nacional para como os alunos cotistas são tratados por colegas, pela sociedade e pelas instituições de ensino. 

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Sancionada em 2012 como fruto da luta dos movimentos negros e sociais, a Lei de Cotas reserva no mínimo 50% das vagas em universidades e institutos federais para estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. 

De acordo com dados do Censo da Educação Superior, em 2022, 55.371 pessoas ingressaram em universidades, faculdades e institutos federais por meio do critério étnico-racial. Quando recortados por ingressantes de escolas públicas, o número é ainda maior: cerca de 99.866. Ao todo, 45.226 tinham renda per capita inferior a um salário mínimo e meio e entraram no ensino superior. 

Embora o benefício seja uma das melhores oportunidades para democratizar o acesso à educação superior desde que foi estabelecido, a sociedade ainda engatinha em outros quesitos tão igualmente necessários para o cotista. 

Alunos da PUC-SP são acusados de racismo após chamarem de 'cotistas' e 'pobres' estudantes da USP
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Ao Terra, estudantes e ex-alunos relataram que já vivenciaram ou presenciaram situações de menosprezo por condição financeira, raça ou intelectual diretamente ou de forma velada por terem o benefício. 

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A advogada Débora Rodrigues Muniz se formou no curso de direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) em 2020, após ingressar na instituição pela bolsa ProUni 100%, por cota de escola pública. De acordo com ela, o benefício foi fundamental para sua entrada no ensino superior. 

“Eu acredito que pela ampla concorrência não conseguiria porque eu disputaria com pessoas que tiveram qualidade de ensino na rede particular desde muito cedo. Tiveram o embasamento educacional, o acesso à educação de uma forma muito diferente e privilegiada, a qual eu nunca tive. Acredito que a cota é a única alternativa que temos para igualar ou tentar igualar as chances de concorrer com as mesmas pessoas que não tiveram as mesmas chances que eu”, conta. 

No entanto, ela detalha que durante o seu período de estudos presenciou situações de discriminação quase diariamente. “A gente lida com pessoas que têm privilégios e têm benefícios econômicos, uma realidade financeira totalmente diferente da nossa”, reflete. 

“Ela [o estudante cotista] continua sofrendo a discriminação por estar lidando com pessoas que, em sua maioria, têm uma realidade totalmente diferente, são totalmente privilegiadas. Então, por muitas vezes, somos chamados de aproveitadores, de [que a cota é um] privilégio, que entramos de uma forma muito mais fácil do que outra pessoa, que conseguiu [entrar] porque estudou em um colégio público, esse tipo de comentário”, disse Débora. 

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A advogada relembra ainda que os alunos regulares, que não tinham o benefício, acreditavam que os cotistas não deveriam usufruir de todas as instalações da faculdade, como elevadores, por exemplo, visto que eles “não pagavam”. 

“[Diziam] que como cotistas, não podemos utilizar uma coisa, já que não pagamos mensalidade. Muitas vezes, eles até comentam que eles estão custeando as nossas despesas lá dentro” --  Débora Rodrigues Muniz

Experiência similar também foi compartilhada pelo jornalista Italo Oliveira, que ingressou e concluiu o curso de jornalismo pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge), em Salvador, por meio de cotas étnico-raciais. De acordo com ele, a diferença de tratamento de alguns colegas e professores era perceptível, mas acontecia de forma indireta. 

“Em alguns momentos, indiretamente, a gente sente que o tratamento, ainda mais em uma instituição privada, é diferente para com o aluno que paga a mensalidade de forma integral e do aluno cotista. Seja, por exemplo, no atendimento com a coordenação do curso; nas respostas e na maneira que o professor trata a pessoa e etc”, destaca. 

Italo conta que foi "muito rechaçado" e já enfrentou "muitas tentativas de silenciamento" em sala de aula por ser negro e cotista. Apesar da situação, ele detalha que o benefício foi fundamental para que ele conseguisse um diploma de graduação, o primeiro em sua família.

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“Sou um homem negro, periférico, do interior da Bahia, de uma cidade que tem menos de 30 mil habitantes e que possui somente uma escola de ensino médio. Todas as outras escolas são particulares, ou seja, meu ensino já foi ceifado. [Eu] não tinha acesso a uma educação que, por exemplo, os alunos das escolas particulares têm”, contou.  

“Minha família não tinha e, atualmente, não tem condições de arcar com o ensino superior. A cota racial, a cota social, foi a possibilidade de ser o primeiro da minha família a terminar e ingressar em uma faculdade” -- Italo Oliveira

Julia Pereira, estudante de comunicação e jornalismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz entender o ingresso em instituições de ensino pelas cotas – seja por raça, deficiência ou escolidaridade – como parte de um direito dela como cidadã e pessoa negra e aponta que, além das dificuldades, os alunos cotistas também precisam lidar com a discriminação por parte da sociedade. 

“As pessoas vêem as cotas como um termômetro de inteligência, pois, [para elas] quem entrou nas universidades por conta entrou de uma maneira mais fácil” -- Julia Pereira

Dificuldade de adaptação 

A diferença de tratamento de alguns colegas e professores era perceptível, mas acontece de forma indireta, segundo ex-cotista
Foto: Reprodução/Getty Images

Além da diferença de tratamento, outro desafio apontado o pelos estudantes e ex-alunos cotistas é a dificuldade de adaptação no ritmo dos estudos e conteúdos abordados em sala de aula pelos professores, em especial em cursos que abordem a área STEM –  sistema de ensino que abrange as disciplinas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. 

Foi perceptível a diferença entre o nível que eu estava e o nível que outros alunos estavam. Tanto no sentido de conseguir me adaptar à universidade, quanto no sentido relacionado ao conhecimento matemático que o curso exige. Então, essa foi uma das principais questões que eu tive no começo”, conta o estudante de Ciência da Computação Wendel Marques. 

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Wendel entrou na Universidade Federal de Goiás (UFG) através do sistema de cotas étnico-raciais e por escola pública e explica que, diferente dos relatos anteriores, não notou discriminação por situação socioeconômica. No entanto, no início do curso, observava uma leve preferência dos professores a quem demonstrava saber mais sobre o assunto abordado.

“Tem alguns professores que naturalmente acabam mais confortáveis perto de pessoas que aparentam conhecer um pouco mais. Nunca houve nada explícito ou agressivo comigo ou com outras pessoas das salas em que já estive, mas dá pra perceber uma diferença de tratamento. Mas tem professores que, de fato, se preocupam com o nível de toda a turma. Então, existe um trabalho inicial para que todo mundo, de alguma forma, parta de um ponto parecido para que não exista tanta dificuldade”, detalhou. 

Italo Oliveira conta que também sentiu dificuldades em acompanhar a turma, pois migrou do ensino médio em uma cidade do interior para o ensino superior em uma instituição privada na capital e precisou mesclar os estudos com o trabalho. 

“A adaptação foi bem complicada. O choque de realidade foi muito grande. Seja no modo de vida, por exemplo, os colegas estavam sempre indo para as ‘calouradas’ e eu não consegui ir para nenhuma. Não porque eu não queria, mas porque enquanto eles estavam na festa, eu estava trabalhando, estudando. Eu não podia me permitir e nem tinha tempo para ter essas experiências. Esse ponto me marcou”, relembra. 

Outros fatores como a necessidade de uma segunda língua, a disponibilidade de material de estudo e entre outros também geraram impacto na experiência educacional. “Muitos professores não entendem isso. Não entendem esse recorte social. E aí, é preciso você correr atrás desse tempo, desse conhecimento. Conhecimento que você não teve”, apontou Italo. 

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Medo de corte de auxílios e falta de fiscalização

Dificuldades desanimam alunos a continuarem no ensino superior
Foto: Reprodução/Getty Images

O medo de corte de auxílios é constante em algumas instituições, conforme aponta Júlia Pereira. Em julho deste ano, a Uerj, universidade onde ela estuda, anunciou cortes em auxílios estudantis. Entre as mudanças, estão a reformulação do Auxílio Material Didático (AMD), o fim do auxílio alimentação para estudantes do campus Maracanã e a redução do valor da renda necessária para recebimento da Bolsa de Apoio à Vulnerabilidade Social (BAVS). Como forma de protesto, estudantes ocuparam por mais de 50 dias a reitoria da universidade. 

Na época, a reitoria afirmou que não tinha mais recursos para manter os benefícios e chegou a estabelecer regras de transição, mas estudantes afirmavam que auxílios são essenciais para manterem o estudo. 

Eu fui uma das alunas afetadas porque eu sou cotista. A gente teve um panorama novo da noite para o dia, que a gente não esperava. Fomos pegos de surpresa. E vejo o quanto estamos numa situação muito vulnerável. Eu não sei qual vai ser o panorama de 2025 para alunos cotistas na Uerj. [...] Você vê os seus direitos sendo diminuídos, então, são muitos desafios que acho que para quem está no grupo de cotistas é quase difícil dizer que vai acabar”, desabafou. 

Outro ponto abordado pelos alunos é a falta de fiscalização dos beneficiados pelo sistema. Mesmo com a presença de bancas avaliadoras, reclamações e denúncias de fraudes são frequentes nas instituições de ensino brasileiras. 

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“Enquanto cotistas, acho muito ofensivo que pessoas tentem fraudar o sistema de cotas. Existem pessoas que ingressam em faculdades e universidades se passando por pessoas pretas, quando claramente não são. É uma maneira muito injusta e desonesta de ingressar em uma faculdade, por uma luta que é tão extensa”, apontou Júlia. 

Ainda há muito a ser feito

Especialistas e alunos avaliam que Lei de Cotas deve ser ampliada
Foto: Reprodução/Getty Images

Em novembro de 2023, a Lei de Cotas passou por uma reformulação e ampliação. Com a revisão, o limite de renda familiar máxima para participar foi reduzido, quilombolas passaram a ser beneficiários do sistema, dentre outras medidas. Apesar das mudanças, especialistas e estudantes avaliam que ainda há muito a ser feito.

Na visão de Gilvan Araújo, professor, sociólogo, mestre e doutor em Comunicação, o benefício deveria ser garantido desde o ensino fundamental, para garantir o acesso de minorias desde os primeiros anos de educação. Outro ponto seria o oferecimento de bolsas de estudo integral para alunos cotistas, para estimular o permanecimento dos alunos. 

“É importante afirmar que a Lei das Cotas vem corrigir, em parte, uma injustiça social de séculos, que sempre pensou o acesso à educação e ao serviço público para brancos, mesmo a população negra sendo maioria no País. Garantir o acesso de negros, indígenas, pobres e deficientes físicos é dar a todos uma oportunidade de estudar e crescer nas suas carreiras profissionais escolhidas”, avalia o especialista ao Terra. 

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Enquanto ex-cotista, Débora Muniz destaca que há outros pontos, além da entrada na universidade, que impactam o ensino superior de aluno de ações afirmativas. A permanência e desenvolvimento podem ser diretamente influenciados por questões que podem parecer corriqueiras para quem não vivencia, mas que fazem diferença dentro da realidade de um aluno cotista. 

“Acredito que não deveria ter apenas a isenção da matrícula e das mensalidades, deveria também ampliar para ter uma bolsa [para apoio financeiro] porque essa pessoa que ingressa por meio de cotas continua tendo uma renda limitada, continua tendo uma realidade financeira difícil e, ainda com o ingresso em uma faculdade, ela não tem a possibilidade de trabalho com essa carga horária de 44 horas semanais”, detalhou. 

Fonte: Redação Terra
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