Oferecimento

‘Do silêncio ao Silício': como brasileira chegou ao Vale do Silício e virou porta de entrada para afroempreendedores

Danielle Marques Pereira criou o programa para levar empreendedores negros para uma imersão de duas semanas no reduto das maiores big techs

25 nov 2024 - 05h00
Danielle Marques idealizou projeto para levar empreendedores negros para o Vale do Silício, Califórnia
Danielle Marques idealizou projeto para levar empreendedores negros para o Vale do Silício, Califórnia
Foto: Arquivo Pessoal/Danielle Marques Pereira

Chocante. É como descreve a analista de inclusão e diversidade, Danielle Marques Pereira, ao falar sobre a sua primeira vez visitando o reduto das big techs no Vale do Silício, na Califórnia. Ela era a única mulher negra em um grupo de 70 pessoas dentro de um curso de tecnologia e inovação que fez em 2021. Ao se deparar com a dura realidade, ela resolveu mudar o mundo das pessoas ao seu redor. 

"Aquilo para mim foi muito marcante, porque ao mesmo tempo que eu estava realizando o sonho Danielle de 15 anos, que sempre sonhou vir para os Estados Unidos, eu estava sozinha. Não tinha ninguém parecido comigo.”

Publicidade

Passou noites em claro pensando como poderia levar tudo aquilo que aprendeu para outras pessoas, que assim como ela, eram de regiões periféricas do Brasil. Ela queria que mais empreendedores negros tivessem a mesma oportunidade, que fossem vistos nesse meio da tecnologia e inovação. 

É assim que Do Silêncio ao Silêncio surge em 2022. A iniciativa proporciona uma imersão ao berço das maiores big techs do mundo em São Francisco. Após um longa seletiva, onde mais de 300 candidatos se inscreveram, o projeto conseguiu levar neste ano dez startups para essa grande experiência de estar dentro da rotina de grandes empresas de tecnologia. 

O grande incentivo

Dani é nascida e criada no bairro João Rossi, em uma comunidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo), e sempre sonhou em viajar para fora, por influência de sua madrinha, que é médica e vivia viajando, mas a sua realidade era muito diferente daquela. 

A filha de dona Rosa e Sebastião diz que os pais são os maiores 'estrategistas' que conhece, porque embora a família não fosse privilegiada, eles sempre fizeram de tudo para que ela e os dois irmãos tivessem acessos a outros ambientes e possibilidades. Eles prezavam muito pela educação, pois sabiam que era aquilo que faria com que os três avançassem na vida. 

Publicidade
Danielle Marques realizou sonho de visitar os Estados Unidos em abril de 2022
Foto: Arquivo Pessoal/Danielle Marques Pereira

Por isso, Danielle se empenhou nos estudos, que gostava muito. Quando chegou na época do vestibular, embora sonhasse em cursar medicina, ficou confusa em sua escolha. "Por mais que eu quisesse, ainda parecia algo muito distante", reforça. 

Entrou para um cursinho oferecido pela administração municipal e prestou Administração e Medicina na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas não conseguiu passar. Já na Universidade Estadual Paulista (Unesp), tentou História e conseguiu a vaga, mas o campus ficava em Franca (SP) e não tinha recurso para se mudar para lá. Ir e voltar todo dia também era inviável. 

No meio do ano seguinte, conseguiu uma vaga em Administração na Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). 

"Eu não tinha condições financeiras, mas realmente queria estudar. Então, eu sabia não só precisava do diploma, precisava de um norte", ressalta. 

Encontrando a motivação

Danielle conta que durante toda a faculdade, não se identificava com o curso, primeiro porque não sempre detestou números e também porque não se enxergava ali. A identificação com a área só chegou em 2017, quando um amigo perguntou se ela tinha tema para o seu trabalho de conclusão de curso e sugeriu que ela fizesse uma pesquisa sobre afroempreendedorismo. 

Publicidade

"Aí eu comecei a me ver, ver as pessoas da minha família, pessoas do meu bairro. Que é esse empreendedorismo por necessidade e não por oportunidade", relembra. 

Naquele mesmo semestre, teve uma aula sobre empreendedorismo que a deixou em choque, pois percebeu que haviam dois tipos de empreendedorismo no universo: o feito para o homem branco, hétero, e cheio de privilégios, e aquele para o restante do país. 

Conforme o Sebrae, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNADC) apontam que em 2021, havia 28,6 milhões de empreendedores no Brasil: 9,8 milhões de homens negros, 8,7 milhões de homens brancos, 5 milhões de mulheres brancas e 4,7 mulheres negras. Ou seja, mais de 53% são de empreendedores negros.

"Se a gente pegar os dados, vê que mais de 53% dos empreendedores brasileiros são negros e, às vezes, não recebem nem um salário mínimo. Esse conhecimento da universidade não chega na periferia. Aqueles que estão empreendendo na periferia, estão sem recursos, sem educação e sem acesso a isso", aponta ao falar de sua pesquisa. 

Publicidade

“Na aula, o professor dizia para fazer um plano de negócio, e assim, apresentá-lo para investidores. Mas sem acesso, como é possível fazer esse networking? Foi dali que surgiu a ideia de fazer essa intermediação entre empreendedores periféricos com investidores.”

Grupo visitou o Vale do Silício, na Califórnia, em abril deste ano
Foto: Arquivo Pessoal/Danielle Marques Pereira

Após passar por um núcleo de empreendedores da Universidade de São Paulo (USP), que prestava inclusive serviços para comunidade, conheceu o ecossistema de startups e tecnologia.  Passou a se questionar onde estavam esses empreendedores negros, que não estavam nessas empresa. 

Nesse meio tempo, ao entrar no mestrado na Universidade de Brasília (UNB), viu um evento sobre inovação e tecnologia no Vale do Silício, onde falavam sobre a importância da diversidade dentro desse locais, mas uma coisa chamou a sua atenção: só havia homens brancos falando sobre isso. 

“Isso me gerou uma revolta em mim de mais uma vez estarem falando de nós, sem nós”, declara. 

O sonho de volta

Ao ver o evento, retomou o sonho de ir para os Estados Unidos e surgiu a ideia ir para o Vale do Silício se especializar em sua área, mas a realidade lhe bateu à porta. Só o valor do curso era de R$ 12.500, fora as custas de passagem, hospedagem e alimentação. Ela não tinha esse dinheiro, mas um amigo sugeriu fazer uma campanha de arrecadação online. 

Publicidade

Conseguiu doações até de amigos que não tinham muito, e se sentiu na obrigação de ir e trazer esse conhecimento para as pessoas de sua comunidade. Em abril de 2022, ele fez uma viagem com uma turma de 70 pessoas. Ela era a única pessoa negra. 

Jovem negra criou projeto para levar empreendedores para conhecer big techs na Califórnia
Foto: Arquivo Pessoal/Danielle Marques Pereira

“Há alguns dias eu estava andando no meu bairro, e um mês depois, no Vale do Silício, que parecia um filme da Disney. Um choque cultural de ver a galera testando carros autônomos -- que ainda não existiam no Brasil –, sendo que tinha gente no meu bairro lutando para ter saneamento básico, sabe? Não tinha um equilíbrio”, afirma. 

Ela tentou viabilizar uma maneira para que essa vivência chegasse a vida de mais pessoas, para que elas pudessem enxergar além das próprias experiências do dia a dia. “Esse conhecimento não poderia ficar só comigo. Eu me sentia com a responsabilidade, até porque várias pessoas confiaram em mim, de compartilhar esse conhecimento. Foi aí que veio do 'Silêncio ao Silício'. Não vou mudar o mundo, mas posso juntar uma galera, e ir fazendo pequenas transformações no mundo ao nosso redor”, frisa. 

‘Do silêncio ao Silício’

Grupo visitou o Vale do Silício, na Califórnia, em abril deste ano
Foto: Arquivo Pessoal/Danielle Marques Pereira

O projeto nasceu do sonho dela de ocupar esses espaços. Mais do que isso, de ver gente como ela, ocupando também. Em 2023, o processo seletivo foi aberto e recebeu 300 inscrições. 

Publicidade

“Eu falava muito isso com os meu amigos, a minha terapeuta, sobre existir um sentimento de inadequação, de estar num espaço que não foi feito para pessoas como eu, tanto que você vê que não foi feito que só tinha eu (em 2021). Mas eu sentia também que eu precisava estar ali e multiplicar isso”, destaca. 

Deste montante, dez empresas voltadas para tecnologia em várias áreas como saúde e educação foram selecionadas. Em parceria com a startup Startse, e outras empresas, o grupo ficou por 15 dias em uma imersão por São Francisco, em abril deste ano, com tudo pago. 

Lá, os participantes estiveram em palestras, workshops, visitas nas maiores empresas do Vale, e fizeram networking com empresários americanos. Ao final do programa, cada um dos empreendedores recebeu um certificado da organização, em parceria com o Brazil at Silicon Valley (BSV).

A analista não deixa de destacar que contou com muitos parceiros para que isso tudo pudesse ser realizado, para a emissão das passagens, do visto americano, e de uma equipe jurídica para viabilizar o projeto. 

Publicidade

Sobre a sensação de levar esses empreendedores para o maior polo de big techs do mundo, Dani mais uma vez usa a palavra chocante. Depois, fala sobre alívio e gratidão. 

“Quando chegou aqui e vi que isso tinha acontecido, que as coisas tinham se materializado, chorei de alívio. Acho que depois vem o sentimento de gratidão pelas pessoas que vamos encontrando e até pelos nãos que recebemos. Na hora parece duro, mas eu sinto que a vida nos move para nos conectarmos com as pessoas que realmente vão ajudar no processo. Essa galera que veio nem se conhecia, mas se tornou uma rede muito legal, e eles não tiveram essa experiência sozinhos. Não passaram pelo que eu passei. Acho que a vida também é sobre facilitar o caminho de quem está vindo, né? Não é porque sofremos e passamos por perrengues, que nós precisamos deixar as outras pessoas passarem pelo mesmo. Que bom que foi mais fácil para eles e que eles facilitem o caminho de muitas outras pessoas”, finaliza. 

Fonte: Redação Terra
Curtiu? Fique por dentro das principais notícias através do nosso ZAP
Inscreva-se