Educação superior: Desigualdade social ainda limita o acesso e condiciona escolhas profissionais dos mais pobres

O ensino superior tem a maioria de suas vagas no setor privado e um setor público academicamente seletivo. Estudantes mais ricos ricos têm vantagens no acesso aos dois tipos de ensino, mas por motivos diferentes

27 dez 2024 - 06h39
(atualizado às 07h21)
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

No último dia 10 de novembro, quase três milhões de estudantes brasileiros participaram do segundo dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A edição de 2024 foi marcada por ampla participação de concluintes do ensino médio na rede pública, com 94% dos inscritos, totalizando 1,66 milhão de candidatos. Desde a aprovação da Lei de Cotas, em 2012, os alunos de escolas públicas conquistaram mais oportunidade de ingresso nas concorridas universidades públicas. Contudo, apesar de estudos mostrarem que elas passaram a refletir mais a diversidade da população, a desigualdade no acesso ao ensino superior ainda é uma realidade complexa e longe de ser superada.

Pesquisas recentes, realizadas por nosso Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Desigualdade, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIED-UFRJ), em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), evidenciam que os estudantes de famílias mais ricas ainda continuam em vantagem significativa no acesso ao ensino superior, em relação aos de baixa renda.

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Esses resultados, publicados recentemente na revista científica Sociological Science, uma das mais prestigiadas na área, se baseiam no acompanhamento de 1,7 milhão de estudantes que concluíram o Ensino Médio em 2012, ao longo de cinco anos. Isso foi possível graças ao nosso acesso a dados inéditos que ligam o Censo Escolar ao Censo de Ensino Superior e ao Enem. Assim, pudemos integrar informações sobre desempenho acadêmico, características socioeconômicas e trajetória educacional dos estudantes.

Entre as pessoas analisadas, dois terços (cerca de 1,1 milhão) participaram do Enem entre 2012 e 2016. Destes, 70% ingressaram no ensino superior: 76% em instituições privadas e 24% em públicas. Dentre os que não fizeram o Enem, 25% ingressaram em cursos de graduação por outras vias, mas que não foram nosso foco principal neste estudo.

Ao examinarmos as escolhas educacionais de alunos com desempenho similar, mas oriundos de diferentes classes sociais, constatamos uma "vantagem dupla" para os mais ricos.

Primeiramente, eles têm maior probabilidade de obter notas elevadas no Enem, pré-requisito para as concorridas vagas em universidades públicas gratuitas. Além disso, mesmo quando seu desempenho é inferior, os recursos financeiros familiares lhes permitem compensar o fato de não alcançarem notas competitivas, garantindo acesso a instituições privadas, que requerem pagamento de mensalidades.

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Essa relação entre renda e desempenho pode ser atribuída às melhores condições educacionais proporcionadas por escolas privadas e ao maior acesso a oportunidades de aprendizagem complementares como aulas particulares e cursos preparatórios para o Enem.

Em contraste, estudantes de baixa renda enfrentam desafios adicionais. Praticamente todos são egressos do sistema público, que oferece escolas com condições infra-estruturais piores. Além disso, há menor disponibilidade de recursos familiares para financiar os custos em uma faculdade particular.

Conseqüentemente, muitos desses estudantes ajustam suas aspirações de carreira conforme o desempenho no Enem, para garantir uma vaga em qualquer curso gratuito disponível no sistema público, ou acabam desistindo de ingressar no ensino superior.

Ou seja, estudantes ricos têm condições mais favoráveis de alcançar um bom desempenho acadêmico. Quando isso não acontece, eles ainda têm opções, principalmente no ensino privado. Estudantes mais pobres, por sua vez, precisam não só de boas notas, mas também de um contexto favorável para seguir seus estudos. Essa disparidade explica por que, mesmo com desempenho semelhante, os mais ricos continuam a ter maior probabilidade de sucesso educacional.

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As políticas de cotas se restringem ao setor público, altamente seletivo, que configura apenas 24% das vagas no ensino superior do país. Portanto, as vantagens compensatórias dos mais ricos acabam sendo mais pronunciadas na desigualdade de acesso a instituições particulares.

Nosso estudo sugere a necessidade de políticas de financiamentos mais consistentes e condições de pagamento acessíveis e sem descontinuidades, como aconteceu com o Financiamento Estudantil (Fies), que acumula hoje mais de 800 mil estudantes em busca de renegociação de dívidas.

Além disso, é importante garantir que os cursos oferecidos por essas instituições privadas tenham qualidade, para que o investimento dos estudantes, especialmente os mais vulneráveis, realmente gere os benefícios esperados em sua trajetória profissional.

Uma agenda de pesquisa

Esses achados são importantes para entendermos os mecanismos que estruturam a relação entre educação e desigualdade no Brasil. No contexto nacional esse tipo de estudo é especialmente desafiador porque demanda a ligação entre várias bases de dados que representam diferentes níveis e etapas do sistema de ensino brasileiro como ensino médio e superior.

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Os dados mobilizados nessa pesquisa também já renderam outras descobertas importantes. A tese de doutorado do nosso colaborador, Adriano Senkevics, foi premiada, tanto pelo programa de Pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP), quanto pela CAPES. Ele abordou aspectos históricos e sociais da expansão do ensino superior brasileiro, que ao longo da década de 2010, culminou em 8,6 milhões de matrículas de alunos em 2020 — contra apenas 1,5 milhão em 1990. Adriano mostrou como o ensino privado e à distância foram importantes para esse aumento de vagas. Com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e de outras instituições de fomento, estruturamos uma agenda de pesquisa para nos aprofundarmos nesse tipo de análise.

Essa agenda também deu origem a outro artigo, publicado na revista Higher Education, onde mostramos que estudantes pretos, pardos e indígenas têm, em média, desempenhos acadêmicos inferiores do que estudantes brancos, mesmo quando têm rendas familiares semelhantes. Esses dados indicam que as desigualdades raciais não se resumem à renda, mas são intensificadas por processos de discriminação e desvantagens acumuladas ao longo da trajetória escolar.

Nos próximos passos dessa agenda, pretendemos incorporar dados mais recentes e ampliar a análise para incluir a educação à distância. Além de investigar o acesso, queremos compreender as razões por trás da evasão universitária, comparando as condições de estudantes que conseguem se formar com as daqueles que abandonam os estudos. Esse aprofundamento é importante para embasar novas políticas públicas efetivas, que reduzam desigualdades com base em evidências científicas. Assim, fazemos a nossa parte na construção de um ensino superior mais inclusivo e justo.

Flávio Carvalhaes recebe financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)..

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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