Com redação sobre a violência contra a mulher,o Exame Nacional do Ensino Médio dribla disputa entre Executivo e Legislativo e estimula o debate sobre a situação das mulheres na sociedade brasileira, dizem especialistas. "Ensine seus alunos a respeitar, não suas alunas a temer. A aceitar. A se calar." Com esse lema, Luana Frazão e Giulia Pezarim, de 16 anos, alunas do segundo ano do ensino médio do Colégio Etapa, em São Paulo, criaram a campanha "Vai ter shortinhos sim".
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Em um mês de debates nas redes sociais, elas conseguiram reverter uma decisão do colégio de proibir que alunas usassem shorts acima da altura do joelho. "Tenho orgulho de dizer que conseguimos influenciar outros movimentos estudantis", conta.
No último domingo (25/10), a experiência adquirida com a iniciativa fundamentou a redação que Luana escreveu no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). "Falei muito sobre a violência psicológica que nós, mulheres, sofremos nas ruas. Existe machismo, mesmo que alguns teimem em não admitir, e ele é o culpado por toda a violência que enfrentamos", conta a estudante.
Mais de 7 milhões de candidatos tiveram que escrever sobre o tema "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira" na prova realizada no último fim de semana. "Acho muito importante um tema desse tipo ser adotado por um exame como o Enem, pois mesmo quem tenta evitar o assunto acabou tendo contato com ele e com diversos dados que mostram a gravidade do problema", diz Luana.
Deputados federais, como Marco Feliciano e Jair Bolsonaro, acusaram o exame de "doutrinação" por incluir uma questão sobre o feminismo que cita a filósofa francesa Simone de Beauvoir: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher".
Para Cláudia Vianna, professora da Faculdade de Educação da USP e pesquisadora de políticas educacionais de gênero, "a indignação vem em nome de uma disputa de ondas conservadoras contra o crescimento da demanda pelo combate à descriminalização de gênero na educação".
A especialista diz que a presença inédita desse tipo de questão na prova ocorre num momento importante, em meio à resistência cada vez mais acentuada de setores conservadores à inclusão de termos como gênero, diversidade sexual, sexo e sexualidade nos planos municipais e estaduais de educação, atualmente em debate nas câmaras municipais e assembleias legislativas. "Daí vem o espanto e grito desses setores contra o Enem. Para justificar a exclusão, eles utilizam um pseudoconceito – da 'ideologia de gênero' –, que diluiria as famílias, ensinaria as crianças a não ter pertencimento identitário. Ou seja, criaram um verdadeiro pânico em relação a essa temática", critica.
"Existe conhecimento produzido. Gênero é um conceito, não é uma ideologia. Ninguém está 'desensinando' meninos e meninas a serem outra coisa. O que se tenta construir é um ambiente escolar que seja capaz de discutir a diversidade."
Entre derrotas e conquistas
A trajetória de debates sobre a inclusão de temas de gênero na educação brasileira ganhou força em 2004, quando o Ministério da Educação (MEC) passou a incorporar o assunto de forma sistemática em planos, programas e projetos.
A tentativa de introdução do kit anti-homofobia nas escolas, em 2011, gerou intensa mobilização contrária e foi vetada. No ano passado, as menções a questões de gênero e orientação sexual foram retiradas do Plano Nacional de Educação (PNE), durante a tramitação no Congresso.
Neste ano, as votações dos planos municipais e estaduais têm seguido o mesmo movimento. "Fica cada vez mais difícil para as instâncias executivas efetivarem políticas públicas nessa área, como criar materiais didáticos, incluir o uso de nome social [nome pelo qual prefere ser chamado] por travestis e transexuais na escola e investir em formação específica para professores, devido à pressão do Legislativo", avalia Michele Escoura, especialista em relações de gênero e sexualidade da ONG Ação Educativa.
A antropóloga destaca, no entanto, que o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela elaboração da prova do Enem, se posicionou por meio do exame e deixou claro que essa é uma discussão importante. "Os temas tratados pelo Enem neste ano representam um avanço que escapa dessa disputa entre o Executivo e o Legislativo. Boa parte dos currículos das escolas públicas e privadas têm se orientado pelos conteúdos exigidos no Enem. Se essa abordagem persistir, professores e coordenadores pedagógicos vão se ver cada vez mais obrigados a incluir esse tipo de discussão nas aulas, à margem das políticas oficiais", opina Escoura, ao defender que o debate deve se estender ao convívio escolar e a situações cotianas, não apenas ao currículo escolar.
A especialista também combate a ideia de "ideologia de gênero", difundida por setores conservadores. "A discussão consiste basicamente em o Estado reconhecer que existem desigualdades pré-estabelecidas entre o masculino e o feminino e que isso afasta as pessoas do direito à educação", explica.
Pressão dos dois lados
Escoura avalia que, ao mesmo tempo em que existe uma pressão conservadora que cerceia políticas de gênero na educação, cada vez mais a sociedade civil, incluindo os adolescentes, exige a discussão do tema. "Vemos adolescentes montando grupos feministas ou de discussões LGBT nas escolas. Eles têm acesso à informação paralelamente à escola e levam essas situações para a sala de aula, principalmente quando são vítimas de discriminação", afirma.
Giulia, co-criadora da campanha "Vai ter shortinhos sim", também levou o desabafo para a redação do Enem. "A questão da violência contra a mulher não se aplica somente ao caso doméstico. As mulheres são violentadas verbal e fisicamente em todos lugares, no metrô, nas ruas. É preciso educar os homens para que isso não aconteça e orientar as mulheres sobre como denunciar."