"Um brinquedo infantil caminhão-cegonha é formado por uma carreta e dez carrinhos nela transportados. No setor de produção da empresa que fabrica este brinquedo, é feita a pintura de todos os carrinhos para que o aspecto do brinquedo fique mais atraente. São utilizadas as cores amarelo, branco, laranja e verde, e cada carrinho é pintado apenas com uma cor. O caminhão-cegonha tem uma cor fixa. A empresa determinou que em todo caminhão-cegonha deve haver pelo menos um carrinho de cada uma das quatro cores disponíveis. Mudança de posição dos carrinhos no caminhão-cegonha não gera um novo modelo de brinquedo. Com base nas informações dadas, quantos são os modelos distintos do brinquedo caminhão-cegonha que essa empresa poderá produzir?".
A pergunta acima é a 143ª questão da prova de cor azul do Enem 2017, e exige cálculos matemáticos relativamente simples. Sua resolução consistia, basicamente, em analisar as probabilidades de combinação de cores, mas foi acertada por só 11% dos alunos; percentual baixo em meio a um total de 5 milhões de estudantes que prestaram o exame.
De acordo com levantamento feito por professores dos cursinhos Anglo, Objetivo, Etapa e Cursinho da Poli, a pedido da BBC News Brasil, esta foi a questão com o maior índice de erros da prova de matemática do Enem no ano passado. Perdeu apenas para outra questão cujo enunciado foi considerado dúbio pelos professores: a de número 160 da prova azul, sobre como pintar a logomarca da Copa, com apenas 6,5% de acertos.
Mas o que explica o alto índice de erros na questão acima? E o que ela nos conta a respeito do ensino da matemática no Brasil?
A reportagem conversou com professores, especialistas e com o Ministério da Educação para entender quais são as principais dificuldades dos alunos na disciplina, uma das mais temidas pelos alunos do ensino médio. A análise dos dados revela um resultado surpreendente: a maior porcentagem de erros ocorreu justamente nas questões menos complexas; exigiam mais capacidade de raciocínio lógico do que conhecimento de fórmulas sofisticadas.
E os especialistas alertam: apenas três das 45 questões de matemática no Enem tiveram índice de acertos superior a 50%. Ou seja, a maioria dos estudantes erra e muito - mostrando muita dificuldade na disciplina.
Matemática avançada ou cálculos simples?
A pedido da BBC News Brasil, professores dos cursinhos Anglo, Objetivo, Etapa e Cursinho da Poli selecionaram as questões que eles consideraram as mais complexas e de maior grau de dificuldade na prova de matemática do Enem passado, por exigirem conteúdo mais avançado em matemática. Eis uma delas:
"Para realizar a viagem dos sonhos, uma pessoa precisava fazer um empréstimo no valor de R$ 5.000. Para pagar as prestações, dispõe de, no máximo, R$ 400 mensais. Para esse valor do empréstimo, o valor da prestação (P) é calculado em função do número de prestações (n) segundo a fórmula: P = 5.000 x 1,013n x0,013 / (1,013n - 1)"
O exercício pedia a seguinte resposta: qual "o menor número de parcelas cujos valores não comprometem o limite definido pela pessoa?".
Os professores explicam: a solução desse exercício era difícil e trabalhosa: exige conhecimento de uma longa fórmula de logaritmo e a "realização de cálculos com três casas decimais, em poucos minutos que o aluno tinha para fazer, sem calculadora", explica Eduardo Izidoro Costa, professor de matemática do Cursinho da Poli. Pouco mais de 15% dos alunos a acertaram.
Outras nove questões do Enem 2017, no entanto, consideradas menos complexas pelos professores, tiveram índice de acerto ainda menor. Por que será?
'Decoreba' ou raciocínio lógico?
Mesmo sem conhecimento aprofundado em matemática avançada, há questões complexas em que os alunos se saem bem apenas por decorar longas fórmulas.
"Se o aluno sabe a fórmula, ele consegue resolver a pergunta da viagem dos sonhos (que exige conhecimento de logaritmo) ", explica Edmilson Motta, coordenador-geral da rede de ensino Etapa e que, a pedido da BBC News Brasil, levantou os índices de acertos das questões do Enem.
"Mas é muito mais do que decorar fórmulas: é a consequência de entender conceitos. Por mais que a fórmula seja bem ensinada, é preciso que os alunos entendam também a matemática como ciência", opina o professor.
Na visão dos educadores, é esse um dos principais entraves ao ensino de matemática nas salas de aula do Brasil; boa parte das aulas é mais focada em fórmulas do que no estímulo ao raciocínio lógico e ao pensamento matemático.
No Enem 2017, as questões em que os alunos mais cometeram erros exigiam mais capacidade de análise e interpretação de problemas do que a aplicação de fórmulas.
Mais lógica
"O ideal era ter uma ênfase maior no raciocínio. A probabilidade e análise combinatória, por exemplo, exigem que o aluno analise cenários, pensem nos casos possíveis e façam eliminações", diz à BBC News Brasil Mario Jorge Carneiro, professor emérito da UFMG e que já participou da formulação do currículo de matemática da rede estadual de ensino de Minas Gerais.
"O problema é que isso requer mais tempo de raciocínio na prova e também um ensino que ocorra mais lentamente - só que o professor tem um currículo vasto para cumprir. Não basta ensinar uma ou outra fórmula em uma ou duas semanas, isoladamente. Mas sim enxergar (esses temas) como parte de um processo que deve constar nas aulas desde o ensino fundamental, para o aluno ir absorvendo naturalmente."
Para Robby Cardoso, supervisor de matemática da rede Anglo, o aluno acaba criando uma aversão a conceitos complexos, como logaritmo e análise combinatória, quando estes são ensinados como se fossem só um tópico, em vez de permearem o ciclo de ensino como um todo.
"São conceitos que não se esgotam e podem ir sendo aprofundados ao longo do ensino, em vez de dados de uma vez só", diz Cardoso.
Falhas na formação dos professores
A tarefa traz desafios também para os professores: além do tempo limitado em sala de aula para se aprofundar em conceitos difíceis, eles têm, em muitos casos, formação insuficiente para ensinar de modo que estimule o raciocínio lógico, alertam os especialistas.
No caso da matemática, quase um terço dos docentes que ensinam a disciplina no ensino médio não têm formação específica em matemática, segundo levantamento de 2017 do movimento Todos Pela Educação.
Mas mesmo quando os professores são formados na área em que lecionam, sobram falhas na qualificação dos profissionais; falta, por exemplo, treinamento que os capacite a ensinar da forma mais didática possível.
"Mesmo um professor que não precise de formação específica em matemática precisaria que a formação pedagógica o preparasse melhor para atuar nessa área, para ser capaz de traduzir a matemática em algo palpável", opina Carneiro.
Melhoria em diversas áreas
Para a professora de matemática Katia Smole, convidada a assumir a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), "é um fato real o desafio de (melhorar) a formação inicial e continuada do professor, mas é sempre preciso cuidado em não atribuir ao docente tudo o que não dá certo no ensino. É preciso olharmos um conjunto: melhorar os livros didáticos, a formação e dar apoio ao professor para fazer o ensino fluir".
Deficiência de aprendizado
Outro problema importante é que os professores do ensino médio recebem alunos já com uma grave deficiência em matemática, desenvolvida ao longo de anos de dificuldades durante o ensino fundamental.
Segundo dados da plataforma QEdu com base na Prova Brasil 2015, apenas 14% dos 2,097 milhões de alunos do 9º ano do ensino fundamental demonstraram ter aprendizado adequado nessa disciplina.
Essas dificuldades muitas vezes persistem durante a etapa final da educação básica e acabam refletindo no desempenho dos alunos nos exames finais.
"Uma grande parte dos alunos chega aqui sem sequer dominar as quatro operações matemáticas", diz Costa, do Cursinho da Poli, que atende majoritariamente alunos de baixa renda vindos de escola pública.
Outro problema, diz ele, é a dificuldade em interpretar textos, que acaba atrapalhando o entendimento de enunciados - o que também pode estar por trás da dificuldade nas questões de raciocínio.
Medalha de ouro em matemática
Mas nem tudo é negativo. Costa destaca o "encantamento" que vivem os alunos que aprendem, mesmo que tardiamente, a pensar matematicamente em vez de apenas "decorar a fórmula para resolver cada tipo de problema".
E o Brasil, apesar de amargar baixa pontuação em exames internacionais de matemática, conquistou cinco medalhas na mais recente Olimpíada Internacional de Matemática (IMO), realizada neste mês na Romênia.
O destaque foi o estudante paulista Pedro Lucas Lanaro Sponchiado, de 17 anos, que conquistou o ouro e ficou em 12º lugar na colocação geral, entre mais de 600 estudantes vindos de 111 países.
Pedro Lucas diz que sempre se interessou pela matemática, mas foi só no sexto ano, quando chegou até a última fase da Olimpíada Brasileira de Matemática, que descobriu que gostava muito da disciplina.
"Fiquei feliz e percebi que curtia bastante o tema", conta Pedro, hoje no terceiro ano do ensino médio do colégio Etapa, em São Paulo. Faz aulas regulares e aulas extras específicas para treinar para as olimpíadas matemáticas.
Mas foram necessários sete anos de estudo para que Pedro chegasse ao seu nível atual. Ele conta que em sua cidade natal, Santa Cruz do Rio Pardo, na escola os professores e demais alunos "estavam pouco acostumados a esse tipo de interesse (pela matemática). "Pesquisava por minha conta mesmo", afirma.
Despertando mais 'matemáticos'
Como, então, fazer com que mais jovens se apaixonem pela matemática, assim como Pedro?
Robby Cardoso, do Anglo, opina que mudanças devem começar pelo material didático, que deveria incluir mais situações-problema que estimulem o raciocínio lógico, indo além das fórmulas.
Para Carneiro, da UFMG, o ideal é buscarmos "um ambiente cooperativo de aprendizado, com aulas estruturadas em projetos (a serem resolvidos pelos alunos) e com a ideia de que o professor não precisa ter toda a verdade, mas sim conduzir o aluno a investigar, com autonomia".
No entanto, acrescenta, "isso leva tempo e exige maturidade e segurança do professor quanto a seu conhecimento. E, na prática, o fato é que o professor tem tempo limitado e um (cronograma) a cumprir. Então a aula acaba sendo, muitas vezes, 'fiquem quietos enquanto eu exponho a aula e depois cobro na prova'."
Para Katia Smole, do MEC, a nova Base Nacional Comum Curricular, que definirá parâmetros de ensino para todas as escolas brasileiras, estimulará um ensino baseado em competências - como empatia, responsabilidade, cooperação e projetos de vida -, mais do que apenas em conhecimento de conteúdo.
Por que é importante pensar matematicamente?
A despeito das dificuldades do ensino, os especialistas concordam que pensar matematicamente, muito mais do que melhorar o desempenho no Enem, pode ajudar o aluno cada vez mais em qualquer profissão que ele siga no futuro.
"Logaritmos, por exemplo, ajudam a calcular desde a intensidade de um terremoto até o tempo que o corpo leva para metabolizar o álcool ou um remédio", explica Cardoso, que destaca que temas como análise combinatória, das estatísticas e das probabilidades têm tudo a ver com o cotidiano.
"Usamos para calcular quantas pessoas devem ser incluídas (em uma campanha de) cobertura vacinal, quantos números de CEP ou de placas de carro eu preciso para um determinado tamanho de população. E até mesmo quais as minhas chances de ganhar na loteria", diz Carneiro.