Aos 33 anos, Darlise Rosa tem até o 7º ano de estudo e seis filhas em idade escolar. Moradora de Roca Sales, no Vale do Taquari, teve sua casa condenada pela Defesa Civil após as chuvas que atingiram a região. Apesar do drama de ver seus bens destruídos (alguns deles que ainda estavam sendo pagos a prestações), a cozinheira abre espaço para uma preocupação que não é material.
"O futuro delas está na escola. Falo para elas todo dia. Não quero vê-las sofrendo que nem eu e o pai delas. Eu só trabalho em cozinha e não quero essa vida para elas. Quero que estudem, que tenham um futuro bom", disse Darlise ao Estadão.
Com boa parte das aulas suspensas, risco à aprendizagem, crianças e professores abalados, a rede escolar do Rio Grande do Sul parece estar de volta a 2020, quando a pandemia da covid-19 fechou escolas em todo País. O panorama, no entanto, é o registrado nesta semana, após uma enchente histórica afetar o Estado e impactar pelo menos 378 mil alunos só na rede estadual, deixando parte desta geração mais uma vez sem acesso à educação.
Uma das instituições que virou escombro é a Escola Estadual Padre Fernando, onde estudam três das seis filhas de Darlise. A escola foi atingida pela primeira vez na enchente de setembro do ano passado, quando os alunos passaram a estudar no salão paroquial de uma das igrejas de Roca Sales. Com a nova enxurrada do início de maio, a esperança de retorno dos alunos ao prédio original se foi junto com as águas.
"Tinha conversado com as meninas para a gente reunir os pais da Escola Padre Fernando e fazer um protesto para ver se consegue arrumar a escola. Aí veio essa enchente de novo e só piorou a situação", lamenta.
Dados da secretaria estadual de Educação mostram que das 2338 escolas da rede, 1.058 foram afetadas de alguma forma em 248 municípios gaúchos. Os impactos incluem desde danos à estrutura da escola até problemas de transporte e acesso, ou unidades que estão servindo de abrigo para desalojados.
Dados das escolas afetadas (danificadas, servindo de abrigo, com problemas de transporte, com problema de acesso e outros):
- 1.058 escolas;
- 248 municípios;
- 378.887 estudantes impactados;
- 552 escolas danificadas com 212.880 estudantes matriculados;
- 89 escolas servindo de abrigo.
Nesse contexto, autoridades correm para tentar promover alternativas de reorganização da rede que vão desde remanejamento de estudantes para outras escolas até instalação de antenas de internet e ampliação do ensino híbrido, que foi uma das ferramentas usadas na pandemia.
A secretaria de Educação também planeja a construção de escolas de campanha no Rio Grande do Sul. A medida deve contemplar municípios do Vale do Taquari, onde as águas devastaram as cidades. O mapeamento dos locais está sendo feito pela secretaria e deve ser fechado neste fim de semana.
Na última terça-feira, 14, o Ministério da Educação (MEC) publicou no Diário Oficial da União uma decisão do Conselho Nacional de Educação (CNE) que permite a flexibilização do calendário escolar no Rio Grande do Sul. Com isso, as escolas não serão obrigadas a cumprir mínimo de dias letivos desde que cumpram a carga horária prevista para cada uma das etapas de ensino.
O MEC também abriu crédito extraordinário de R$ 46,1 milhões para reforma de escolas e R$ 25,8 milhões para alimentação escolar.
Mãe de filhas cujas idades variam de 2 a 15 anos, Darlise foi impactada pela interrupção de aulas desde a creche ao ensino médio. Mesmo a escola de educação infantil da pequena Isadora, de 5 anos, que não foi destruída pela chuva, está sendo usada pela prefeitura como abrigo para pessoas desabrigadas.
Até o início da semana, Darlise e as meninas estavam em um abrigo, mas resolveu se mudar com as filhas para a casa de um familiar. A dificuldade de acesso à educação é mais uma camada do ciclo de violação de direitos ao qual as famílias do Rio Grande do Sul têm sido submetidas.
A secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, afirma que não é possível estabelecer uma data única para a volta às aulas. Segundo ela, as escolas retomarão as atividades de acordo com a situação particular de cada unidade.
O cronograma incerto e o fato de muitas famílias terem perdido tudo trazem preocupação a respeito da possibilidade de aumento da evasão escolar, sobretudo em uma situação na qual a busca de estudantes por parte do poder público pode ser prejudicada num contexto de grande número de desajolados vivendo em abrigos ou mudando de cidades.
"A gente tem transmitido muita confiança. Agora, uma família que mora no Vale do Taquari, como eu conversei já com gente que fala: 'Não aguento mais perder tudo pela terceira ou quarta vez, estou indo embora'. Não tem como impedir", explica. " Na pandemia usamos muito o processo de busca ativa. Mas a busca ativa tradicional não funciona agora, porque antes você ligava para aluno, mandava mensagem, ia na casa dele, você tem endereço, telefone. Agora a gente não tem."
O governo estadual pretende instalar novas antenas de internet e ampliar a criação de espécie de pontos focais de educação onde alunos e professores poderiam acessar conteúdos on-line.
Capital deve ter escolas de referência para abrigados
A quilômetros de distância de Roca Sales, em um abrigo em Porto Alegre, Bruna Aquino, de 31 anos, tem a mesma preocupação de Darlise. A escola em que seus filhos Caio Aquino, de 11 anos, e Lorenzo Aquino, de 8, estudavam desapareceu sob as águas da enchente.
"Ali há professores especializados para cuidar do meu filho mais novo, que é autista. É uma escola muito boa. Minha preocupação é que não consiga uma escola que dê a ele todo o suporte que ele precisa", diz Bruna.
A prefeitura de Porto Alegre contabiliza até o momento 12 escolas municipais e 16 creches conveniadas danificadas pela enchente. Nessas unidades são atendidos cerca de 5.500 estudantes, muitos deles que agora vivem em abrigos espalhados pela cidade.
A saída dos alunos dos bairros onde vivem bagunçou a rede escolar que precisará ser redesenhada para que essas pessoas consigam estudar próximo ao local onde estão abrigados. Apesar da dificuldade, a expectativa da secretaria é que as aulas sejam retomadas na próxima segunda-feira, 20.
"Estamos levantando onde estão as famílias e esses estudantes e pretendemos realocá-los para essas escolas que têm condições e espaço", afirmou o secretário de Educação de Porto Alegre, José Paulo da Rosa.
Segundo ele, a alocação pode ocorrer em locais próximos ao bairro de origem dos estudantes, ou ainda para "escolas de referência" para o abrigo onde estão. Neste último caso, o secretário explica que a criação de uma cidade provisória para cerca de 10 mil desalojados, como está nos planos da prefeitura municipal, facilitaria a operação. Isso porque, o local em análise, Porto Seco, tem escolas que poderiam absorver esse público.
A prefeitura deve investir na ampliação do programa "Vou à Escola", que fornece gratuidade na passagem de ônibus para estudantes que moram a mais de 2 quilômetros da escola.
"Alguns estudantes que não precisavam, porque moravam perto da escola, talvez agora precisem. Uma outra estratégia que a gente está trabalhando é utilizar as vans. Além do 'Vou à escola', potencializar algumas lotações que fariam o transporte de alguns desses abrigos, ou localidade específica, até essas escolas de referência", explica Rosa.
A secretaria também estuda transferir os professores que trabalhavam nas escolas atingidas para as unidades que vão absorver os estudantes desabrigados. "Minimiza um pouco o impacto dessa mudança tendo o mesmo o mesmo professor na nova escola", diz o secretário.
Professores vítimas da enchente também têm dificuldade em voltar
Um aspecto que dificulta os planos da prefeitura de Porto Alegre é o fato de que muitos professores da rede também foram atingidos pela enchente. É o caso da professora Letícia Hernandes da Silva, de 40 anos, que trabalha na Escola Municipal Vereador Antônio Giúdice, no bairro Humaitá, em Porto Alegre. Assim como a escola, sua casa também foi inundada no bairro e desde então está abrigada na casa dos pais, no litoral do Estado.
"Primeiro eu tenho que ter condições de voltar para casa. Não adianta me remanejar para outra escola se eu não sei nem onde vou morar. A gente tem um apego com os alunos. Não é simplesmente me jogar em outra escola", argumenta Letícia.
Enquanto a situação não é resolvida, Letícia planeja as atividades que fará com os estudantes quando voltar ao trabalho. Professora de artes, ela acredita que terá um papel fundamental para minimizar os danos causados aos estudantes pela catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul.
"A gente já estava com um plano de recuperação de aprendizagens em função da pandemia, agora mais essa da enchente. É uma situação tão confusa que lamento por eles, porque é uma geração que vai ser muito afetada", opina.