Um ano depois de se aposentar, Josélia Miranda fez a sua inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Não estudou muito para a prova, confessa. Foi com o que tinha de lembrança dos assuntos do já tão distante período do colégio. Talvez por sorte de principiante (não tão principiante assim), conseguiu uma boa nota no exame e hoje, aos 64 anos, está no último semestre de Direito na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
"Se você me perguntar porquê, nem para quê, eu não sei", brinca Josélia, enquanto desenrolava uma conversa de cerca de 40 minutos sobre o que a levou à graduação.
Esse é o último episódio da série de reportagens Onde o Enem me levou?, que conta a história de vários brasileiros que, a partir do exame, conquistaram marcas profissionais, pessoais e financeiras transformadoras. Ao todo são cinco episódios. Confira e se inspire nesses relatos.
Josélia chegou a se matricular em um cursinho pré-vestibular, mas quando viu as "musiquinhas" usadas pelo professor de Física, que costumam agradar tanto aos mais novos, percebeu que aquele lugar não era para ela. "Eu disse, 'eu não suporto, não tenho paciência para isso, vou fazer como Deus quer mesmo'. Dizem que Deus tem pena dos bêbados, dos inocentes e dos idosos, né?", afirma.
A graduanda ainda brinca com o tamanho do seu feito. Por ter sido aprovada em Direito apenas no segundo semestre, e na lista de espera, Josélia diz aos risos que ficou ali "abaixo dos burrinhos". Mas a verdade é que só o fato dela estar entre os matriculados no curso pelo Enem já a torna quase que uma exceção.
Historicamente, os números de candidatos na faixa dos 56 aos 60 anos - onde Josélia se encaixava no ano em que fez o Enem - não costuma chegar nem a meio por cento do total de candidatos do exame nacional. O percentual é, de certa forma, esperado, já que são os jovens os mais interessados em entrar na universidade e dar início a uma carreira no mercado de trabalho.
Para candidatos mais velhos, como Josélia, o peso de ser aprovado não é o mesmo, assim como os motivos que os levam até ali --o que não diminui a relevância da aprovação, pelo contrário.
Quantas pessoas de 51 a 60 realizaram o Enem de 2018 a 2022?
Rumo da vida
Ao longo da vida, Josélia tentou concluir uma graduação por diversas vezes. Quando mais jovem, começou a trabalhar na área da indústria, depois de fazer um curso técnico em Química. O conhecimento de anos de trabalho na área, inclusive, pode ter influenciado na boa nota no Enem, ela acredita.
Chegou a iniciar uma graduação em Química, mas precisou abandonar o curso quando a mãe morreu. Depois tentou Jornalismo, também na Ufba, mas numa época em que não existia o Enem e o vestibular era promovido por cada universidade. Mais uma vez precisou deixar a graduação ao assumir um cargo de concursada e não conseguir conciliar com o horário da faculdade com as aulas, que eram realizadas apenas no turno matutino.
"Eu fiz todas as estratégias administrativas para tentar prorrogar o curso, mas eu não conseguia conciliar. Chega uma hora que você acaba perdendo a vaga. Esse curso eu tinha feito, faltavam apenas 12 matérias, uns dois semestres para terminar, mas eu não consegui terminar. E aí, eu casei, tive filhos. A vida vai tomando seu rumo e eu acabei deixando pra lá", se lembra Josélia.
Quando se viu, aos 58 anos, aposentada e com tempo de sobra, resolveu reviver o sonho de anos atrás. Até aqui, só pelas pessoas que conheceu, Josélia já considera que valeu a pena.
"Você se aposentar é um negócio meio difícil. Eu tenho seis anos que me aposentei, até hoje sinto falta. Não do trabalho, mas do pessoal. Da convivência, sabe? É diferente."
Para ela, o formato do Enem foi um facilitador, por mesclar diferentes disciplinas em um mesmo caderno. Como exemplo ela cita Química e Física. A primeira, sua especialização, e que "dá para resolver toda prova com regra de 3"; já a outra, uma "matéria difícil". "Mas as provas são juntas, então uma ajuda a outra", considera.
Preconceito
No geral, a convivência com pessoas mais jovens é algo ressaltado por Josélia. Ela conta ter aprendido muito com os mais novos, além de ter conhecido "pessoas maravilhosas" na graduação. Ainda assim, não deixa de citar o preconceito pela diferença de idade.
"Eu acho, pode ser só impressão, mas acho que já sofri alguma coisa de etarismo. Porque os jovens são ótimos quando está tudo bem, mas nós só descobrimos quem é o outro num momento de conflito, de discordância", diz Josélia, que acredita ter passado por discriminação nesses momentos.
Ela, que atualmente estagia na Defensoria Pública da Bahia, também sente o preconceito ao tentar se candidatar para uma vaga de emprego. Josélia conta que não teve experiências em escritórios, e que a idade pode ter sido um fator que pesou nas seleções.
"Eu tentei, mas eu mandava os currículos e eu acho que também teve um certo etarismo. Porque, eu acredito que existe um determinado padrão que as entrevistas colocam", diz.
Futuro
Depois de formada, Josélia pensa em atuar na área do Direito. Bem diferente do que ela mesma pensa, sem "o porquê, nem para quê", a graduação parece que tem um grande propósito.
"Na Defensoria, eu acabo me envolvendo muito com as coisas, com a necessidade do pessoal. Então, eu gostaria de exercer essa atividade. Se não for pago, eu fico bem. Porque eu acho que não vão dar emprego a velho, né? Trabalho a gente sempre encontra, emprego que é difícil", brinca.
Josélia cita como exemplo o trabalho feito pelo grupo Tamo Juntas, que ajuda de forma voluntária mulheres vítimas de violência doméstica. É uma opção de atuação que ela pensa em seguir, apesar de não querer limitar seu futuro. "Se der para ganhar um dinheirinho também, não faz mal a ninguém. Não sei, só Deus é quem sabe."