“Mas a liberdade para amar implica na liberdade de desobedecer – a devoção não pode ser criada sem o risco da impiedade”
R.Barton Perry – Puritanism and Democracy, 1944
Quincy Skinner, um dos eméritos de Cambridge, diz-nos que a moderna teoria do direito de resistir-se à opressão resultou da Reforma Protestante. Cansados de se verem perseguidos pelos príncipes católicos - quando não caçados e mortos como hereges, como ocorreu em Paris na Noite de São Bartolomeu em 1572 -, teólogos calvinistas, como Ponet e Knox, aconselharam mandar às favas a tradição cristã. Nada de aceitar-se a cega submissão ao mando de César. Um rei mau que “exceder o poder que lhe foi conferido por lei” tinha que ser detido e até derrubado do trono. A fé de cada um era um assunto pessoal, e nada, nem mesmo o soberano poderia intervir nisso. Resistir era para eles, antes de tudo, uma questão de moral religiosa.
Coube ao Dr.Locke, o patriarca do liberalismo do século 17, em seus ensaios e tratados dos anos de 1690, secularizar essa herança da teologia rebelde. A legitimidade da revolta, para ele, configurava-se especialmente no caso em que o “governo age contrariando seu fim”, deixando de proteger a liberdade e a propriedade dos súditos. Os reis ingleses haviam sentido o efeito da doutrina subversiva na própria pele quando a Revolução Puritana decepou o ilustre pescoço de Carlos I em 1649, e, depois, ao por a correr o seu neto Jaime II, em 1689.
A idéia de ser justo apelar às armas em caso da opressão ser intolerável atravessou também o Atlântico. Quando os pais peregrinos aportaram o Mayflower na América do Norte, em 1620, traziam em seus baús, em meio ao livros santos, o sagrado direito à insurgência. Um século e tanto depois, seus descendentes não contentaram-se somente em amotinar-se contra outro rei inglês, Jorge III, mas também ousaram criar, concluída a Revolução de 1776, um novo sistema político: a República Presidencialista.
Temerosos, porém, de um retrocesso, que fizesse com que um neomonarquismo, de inspiração inglesa, voltasse a ser implantado, os democratas insistiram em dois pontos: impedir a formação de um exército permanente ( que pudesse vir a servir a um futuro Cromwell americano), e legalizar a posse de pistolas, mosquetes e similares em mãos do homem comum, do cidadão americano. Como disse então Richard Henry Lee, um dos signatários da declaração de Independência, “para preservar a liberdade, é preciso que a comunidade inteira sempre possua armas e seja ensinada desde jovem a saber usá-las”.
Acreditavam ser aquela a melhor maneira de assegurar-lhes os direitos e ao mesmo tempo meter medo em qualquer magistrado com inclinação autoritária. Faziam assim ver, a quem ambicionasse alçar-se à tirania, que não teria pela frente ovelhas mansas prontas para a tosquia. O povo americano era livre porque todos tinham armas.
O Dr.Locke já, bem antes, pensara nesta situação e afastara qualquer temor do povo sair-se com bacamartes a tiracolo. Ao contrário de Hobbes, ele não via perigo nenhum nos súditos, eventualmente, poderem ensarilhar baionetas se o mandatário era legítimo e bem intencionado, visto que o povo é conservador, suportando, “sem motim ou murmúrio grandes erros dos governantes”.
Além disso, perambular-se arcabuzado nas colônias americanas era uma realidade. Na conquista de um continente desconhecido, enfrentando nativos hostis e uma fauna feroz, era um absurdo supor-se que algum caçador, lavrador ou rancheiro, pudesse sobreviver sem uma boa porção de pólvora e chumbo à sua disposição. A cidadania, por conseqüência, brotou-lhes das estrias do fuzil.
Isto nos faz entender ser todo o herói popular americano um homem destro no manejo das armas: Daniel Boone, David Crockett, o General Custer, o velho Búfalo Bill, ou ainda, já no nosso século, o próprio presidente Theodor Roosevelt, eram peritos em tiro e faca. Veneram-se lá – trata-se de um verdadeiro culto popular - os revólveres e os rifles.
Logo, não se trata apenas do poderoso lobby da Associação Nacional do Rifle (*) que impede os humanitários de fazerem aprovar uma lei mais rigorosa entravando o acesso às armas, que, diga-se, tanto infelicitam os jovens e seus pais ( segundo o Disease Control and Prevention, 4.634 crianças e adolescentes foram mortos à bala em 1996) . É que ela tem contra si algo bem mais profundo, enraizado na coletividade americana, a consciência de que toda a nação foi povoada, alargada, mantida e esculpida à balaços. Os indicadores calculam que circulam pelo pais, nas mais diversas mãos, mais de 200 milhões de armas que desde 1960 para cá fizeram mais de meio milhão de vítimas. Mais do que as baixas que os Estados Unidos sofreram na Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã.
(*) A National Rifle Association (NRA) foi fundada em 1872 por dois veteranos da guerra civil de 1861-65, como um clube de tiro e caça. A partir de 1968, devido aos assassinatos de Robert Kennedy e o do líder negro Reverendo Martin Luther King terem dado motivo ao Gun Control Act, a NRA identificou-se com os poderosos interesses das fábricas de armamentos leves, pressionando o Congresso para que não aprove leis restritivas aos uso e porte de armas. Mesmo sabendo-se que as armas de fogo tenham sido responsáveis por 45% dos crimes de morte nos E.U.A entre 1861-1999.