“Eles...destroem nossos deuses, derrubam nossos templos e altares... Rejeitam tratados de ética, e ignoram a razão. Você não percebe que o propósito deles é engolir a nação?” diatribe do Movimento Yijetuan, 1899.
Os personagens da Ópera de Pequim são sempre os mesmos. Devido à sua caracterização – vestuário, maquiagem e ornamentos – o público facilmente os identifica. Divergem, em geral, apenas na idade e função. Um papel masculino, por exemplo, um sheng, pode representar um laosheng, um ancião venerável; um xiaosheng, um rapaz; ou um wusheng, um militar. Os trajes dos atores são inspirados nos da época da dinastia Ming, do século 15. Conserva também a Ópera, o mesmo fundo musical – abominável, para nós – tendo como instrumentos principais a yueqin, a guitarra, e o célebre jiuyinluo, o gongo chinês.
Sabe-se de antemão a trama do repertório, bem como aqueles que representam o certo ou o errado. Toda a vez que um jing entra no palco, uma sensação de desconforto, insegurança e medo, acomete a platéia. E não é para menos: a aparência dele é medonha! Carrega na face pintada as cores e as expressões do diabolismo. Os olhos salientes envoltos em tinta preta, um bigodão azeviche, e uma barba terrível que lhe cai abaixo da cintura, compõem-lhe a indumentária apavorante. As falas e exclamações dele arrepiam, e sua pantomima sugere sempre brutalidade.
A Ópera de Pequim, que se chama simplesmente de xiqu, encena o intemporal. É sempre a mesma história, são símbolos que se perpetuam: se o Yin está ali, também está o Yang. Ao Bem acompanha-o , presentíssimo, o Mal. De certa forma é esta consciência da imortalidade das coisas ruins, que nos explica a imensa consternação dos chineses com a noticia de que a sua embaixada em Belgrado fora destruída por três mísseis americanos, lançados em nome da OTAN. Como um alarma, a memória histórica deles ativou-se. O terrífico jing estava de volta
De imediato outros bombardeios do passado, cometidos por ocidentais vitimando chineses, vieram-lhes à lembrança. O executado pelo Nêmesis, o encouraçado inglês que lhes destruiu a Marinha Imperial na Guerra do Ópio de 1839, ou ainda o da ocupação de Pequim, levada a efeito, em 1900, por um exército multinacional de 20 mil homens ( americanos, alemães, ingleses, franceses, japoneses e russos) para sufocar a Rebelião Yietuan, foram-lhes, penso, os mais recorrentes.
Após cada granada explodida sobre os chineses seguia-se a vergonha, materializada numa enfiada de. protocolos e tratados que os colonialistas os obrigaram a assinar. Um deles, o de Shimonoseki, selado com o Japão em 1895, constrangeu-os a entregarem 300 milhões de liang de prata, a titulo de indenização pelos gastos que os nipônicos tiveram em conquistar-lhes o país, tendo ainda que, endividados, ceder a um inglês o cargo de Inspetor Geral da Alfândega do império. Só não esquartejaram a China por inteiro naquela ocasião porque se desacertaram. Até a revolução de 1949, assemelhou-se a uma enorme melancia que americanos, alemães, franceses, ingleses, e tantos mais - a coligação da OTAN enfim -, devoraram em fatias, expelindo sobre ela os seus caroços chupados e secos.
Assim os velhos fantasmas das truculências e humilhações anteriores, repentinamente, corporificaram-se aos olhos do povo e das autoridades, quando receberam, no aeroporto de Pequim, as urnas com as cinzas dos três mortos e as macas dos mais de vinte feridos. Para os chineses, o perverso jing, agora com uma túnica alada, descendo dos céus, vem de novo fazer-lhes maldades, tendo como som de fundo não o inofensivo xiaogu, o pequeno tambor que lhe marca a posição cênica, mas o estrondo das explosões.
Todavia, o panorama agora é outro. De miserável colônia de todos europeus e dos japoneses tornou-se poderio mundial dando oportunidade a que se tornasse rapidamente ( em menos de 30 anos) na Grande Potência da Ásia priorizando o crescimento econômico e sepultando para sempre a ideologia dos igualitarismo marxisa.