Em 1835 foi editado na França o primeiro tomo de um grande livro sobre a importância da democracia na América. O autor era um jovem jurista francês, Alexis de Tocqueville, que iria se celebrizar como um dos mais qualificados escritores de inclinação liberal da história política moderna.
Dois franceses
“Eu confesso que na América eu vi mais do que a América; eu vi a imagem da democracia mesmo, com suas inclinações, seu caráter, seus preceitos, e suas paixões, o suficiente para aprender o que devemos temer ou o que devemos esperar do seu progresso”. Alexis de Tocqueville, 1834
Os Estados Unidos da América devem muito a dois franceses. Por sinal ambos aristocratas e também muito jovens. Um deles, o Marquês de Lafaytte, aos 20 anos de idade, por iniciativa própria, navegou para América do Norte em 1777 para ajudá-la na Guerra de Independência contra a Grã-Bretanha. Não só isso. De volta à França em 1779, convenceu o monarca Bourbon a auxiliar aos americanos. O outro, Alexis de Tocqueville, lá aportou aos 26 anos para uma visita de estudos em 1831, empunhando mais tarde a pena para registrar em livro a melhor descrição (até hoje considerada insuperável) do funcionamento do regime político norte-americano: La Démocratie en Amerique (A Democracia na América, cujo 1º volume é de 1835 e o 2º é de 1840, com quase mil páginas).
É um desses estranhos paradoxos da história das idéias de que dois ricos herdeiros de sangue-azul viessem a sentir-se de alguma forma fascinados pelo que a América simbolizava naquela época. Nada havia naquela época mais oposto à casta deles do que a democracia americana. Tocqueville, por exemplo, era neto de Malesherbes, o advogado de defendera o rei Luís XVI na Convenção em 1794, quase sendo decapitado junto com o soberano condenado.
Tocqueville viaja pela América
Descontente com o novo regime implantado na França com a Revolução de 1830, Alexis de Tocqueville, descendente de um família ultra-realista que padecera o diabo na época do Terror ( 1793-4), decidiu-se viajar para a América do Norte. Ele e outro jovem jurista como ele, chamado Gustave de Beaumont, encontraram um pretexto para vir estudar as instituições penais norte-americanas, aportando em Newport. Rhode Island, em 9 de maio de 1831. Durante os onze meses seguintes os dois farão um longo périplo de 7.500 quilômetros por boa parte da América do Norte, passando por 18 dos 24 estados que então compunham a União, percorrendo-a de Nova Iorque ao Canadá e dali até o sul, a Nova Orleans. Das margens do Mississipi rumaram depois para o norte, para Washington DC, e dali de volta para Nova Iorque, onde tomaram um barco para a França em 20 de fevereiro de 1832. No caminho entrevistaram até dois ex-presidentes.
A América de Tocqueville
Naquela época os Estados Unidos da América limitava-se, como já se viu, basicamente a 24 estados, concentrados na costa atlântica e em parte do meio-oeste. Territorialmente ocupavam um pouco mais de um terço dos atuais Estados Unidos, sendo que a sua população não ultrapassava a 13 milhões de habitantes (5,2% da de hoje). O restante do continente era território índio, estados da república mexicana (Texas, Arizona, Novo México, Califórnia) ou ainda se encontrava em mãos das potências colonialistas, como a Grã-Bretanha (Canadá, Oregon) e a Rússia (Alasca). A escravidão confinava-se aos estados do sul, nas terras do tabaco e do algodão, enquanto o norte e o oeste recém desbravado acolhiam a gente de livre do mundo todo que para lá se dirigia em busca de oportunidades. Mas a América estava longe de ser um mar de rosas. No oeste o chefe indígena Falcão Negro, em junho de 1831, relutava em remover sua tribo para os fundões do Mississipi, enquanto que na Virgínia, Nat Turner, em agosto daquele mesmo ano, rebelava os escravos da região do Southampton, naquela que ficou como uma das mais sensacionais e violentas revoltas da história da escravidão americana.
O Governo do Povo
“O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. É ele a causa e o fim de todas as coisas, tudo sai do seu seio, e tudo se absorve nele”, Alexis de Tocqueville
O que, num primeiro momento, mais chamou a atenção de Tocqueville, no seu contanto direto com os americanos, era de que a soberania do povo (que, na maioria das demais organizações políticas conhecidas jaz oculta, escondida ou sufocada pelas mais variadas artimanhas de reis ou de tiranos), lá estava às escancaras. O dogma da soberania popular não era algo retórico. A preponderância dos interesses dos comuns saltara da vida comunal, estabelecida na época da colonização inglesa, e empalmara o governo estadual e o federal, depois da Revolução de 1776. Mesmo em Maryland, observou ele, um estado que desde a sua fundação era dominado por grande proprietários, proclamou-se o sufrágio universal e práticas democráticas outras. Os antigos mandões da república se conformaram. Como não podiam impedir o acesso do povo às instituições e assembléias, o patriciado tratou de bajular as massas.
Percebeu ele a existência de uma dinâmica irrefreável na democracia. A cada concessão arrancada aos ricos, o regime popular avançava para outra exigência, e desta para mais outra ainda. Convenceu-se, então, que lá “o voto universal dá, pois, realmente, aos pobres o governo da sociedade”. Tanto era assim que dois anos antes de Tocqueville desembarcar, em 1829, Andrew Jackson assumira a presidência dos Estados Unidos (um coronel da milícia da fronteira e plantador do Tennessee), claramente apoiado no voto das classes de menor renda da sociedade norte-americana.
O poder local
Vindo de uma França de tradição centralista, onde durante o Antigo Regime o Palácio de Versalhes mandava em tudo (situação que se acirrou depois da Revolução de 1789 com a ditadura de Robespierre, estabilizando-se no Império de Napoleão), Tocqueville espantou-se com a pujança e autonomia política das pequenas comunidades norte-americanas. Os municípios (county) eram tudo, como se fossem as células vivas do regime. Deles partiam iniciativas que, num movimento ascendente, chegavam até as altas esferas do Estado e da União. E isto era possível exatamente porque o poder central era limitado. A autoridade lá de Washington não amealhava força suficiente para intrometer-se no que ele chamou de “sociedade comunal”. O país nada mais era do que centenas de pequenas localidades – de dois ou três mil habitantes – controladas pelo povo. Um gigantesco corpanzil político dominado pelas articulações e artelhos menores. Os indivíduos que o compunham, não tendo soberano, eram os soberanos de si mesmo. Se o americano não sentia-se obrigado a tirar o chapéu para ninguém, colocava-o sobre a sua própria cabeça.
A modéstia da União
Apesar do presidente norte-americano ter constitucionalmente muitas prerrogativas, na prática pouco uso delas fazia. Devia-se isso às circunstâncias que formaram a jovem república. Ao contrário da França, os Estados Unidos não eram ameaçados por ninguém. Não herdara, como a maioria dos estados europeus, a “mistura de glória e miséria, de amizades e ódios nacionais”. Além disso os imigrantes que não paravam de chegar vinham cheios de iniciativas. Ávidos por terras e por fazer dinheiro (costume que Tocqueville repudiava), eles não precisavam que lhes dissessem o que deviam fazer. Bastava pegar o rifle, o machado, os víveres e a carroça, e tocar os cavalos para o oeste. A sincronia entre a inexistência de inimigos externos (que levou à política da neutralidade e isolacionismo) com a auto-suficiência dos indivíduos, fazia com que nos Estados Unidos a armada e o exército (uns 6 mil homens no máximo) fossem inexpressivos. Evitava-se assim as possíveis tentações autoritárias ou ditatoriais de parte dos líderes políticos. A isso somava-se o que Tocqueville denominou de “instabilidade administrativa”, o fato de que na democracia americana a rotatividade no serviço público era a tônica, impedindo a formação de uma poderosa casta de burocratas que infernizasse os cidadãos com formulários, carimbos, e outros caprichos.
A tradição cultural
O sucesso da democracia norte-americana devia-se também a uma razão de fundo cultural. Os ingleses que para lá foram povoar o Novo Mundo estavam acostumados “a tomar parte nos negócios públicos”. Traziam na sua bagagem um respeitável acervo de liberdades: de palavra, de imprensa, de organização, de participação em júris, etc., pois é bom lembrar que fora na Inglaterra do século XVII que dera-se a primeira revolução antiabsolutista da era moderna – a Revolução Puritana liderada por Oliver Cromwell (1649-1658). Além disso, na América, não tinham que combater uma aristocracia, podendo desenvolver ao máximo a idéia dos direitos individuais e as liberdades locais. Para eles a liberdade não era tanto algo a ser conquistado, mas sim a ser preservado. Pode-se até inferir que a Revolução de 1776 foi um movimento popular de legitima defesa, visto que para os colonos americanos o rei, com os seus decretos e leis repressivas, é quem estava lhes usurpando as liberdades.
A multidão dos iguais
A estabilidade geral daquela sociedade vinha da “multidão incontável de homens quase iguais” que, não sendo nem ricos nem pobres, atuava como um freio aos radicalismos e às violências. O “amor excessivo pelo bem-estar” e a difusão das práticas democráticas, tornava-os naturalmente hostis a qualquer solução revolucionária que por acaso viesse a aparecer no futuro. Uma convulsão social só faria eles perderem o que já haviam amealhado, pois o acesso aos bens mobiliários, que lá não paravam de se multiplicar e diversificar, moderava neles qualquer inclinação extremista que viessem a ter. E assim, rico em observações de toda ordem, seguia o grande livro de Tocqueville, distribuídas em quatro grandes partes, sobre o funcionamento daquela novíssima sociedade ainda, por assim dizer, no seu nascedouro.