Poucos livros sobre educação causaram tanto impacto na cultura pedagógica ocidental como ‘Émile’, de Jean-Jacques Rousseau, obra volumosa editada em 1762. Entre outras razões, por ter sido dirigido a dar instrução ao aluno comum e não para alguém da alta sociedade, um príncipe, como comumente acontecia.
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A polivalência de Rousseau
Ainda que um autodidata, Jean-Jacques Rousseau, genebrino de nascença, leitor voraz desde tenra idade, desenvolvera uma curiosidade intelectual absolutamente fantástica. Ao longo da sua vida - morreu de uremia aos 66 anos de idade no castelo de Ermenoville, em 2 de julho 1778 - , praticamente não houve área de interesse que lhe fosse estranha. Escreveu sobre tudo, desde ensaios políticos que o universalizaram (‘Discurso sobre a desigualdade’, ‘O Contrato social’, etc.) até sobre música e botânica. Além disso, consagrou-se como um notável romancista, escrevendo um livro considerado seminal para o movimento romântico que o sucedeu (‘A nova Heloisa’, 1757), mantendo paralelamente uma intensa correspondência com seus conterrâneos e adversários ideológicos ou críticos da sua obra. De certo modo, ele inseriu-se na grande tradição francesa do intelectual engajado que atua em todos os gêneros possíveis (jornalismo, na composição de óperas, na autoria de peças teatrais, no ensaio político e jurisconsulto, portanto, não deixando de fora as questões sobre educação), cujo último representante foi Jean-Paul Sartre, morto em 1980.
Émile, ou da Educação
Os tratados clássicos sobre educação que até então se conheciam voltavam-se fundamentalmente para a instrumentalização e formação de alguém da elite: do príncipe. Nos tempos clássicos foi celebrado o ensaio de Xenofonte, denominado de ‘Ciropédia’, aparecido no século IV a.C. seguido da vasta obra de Plutarco intitulada Vidas Paralelas de Homens Ilustres, no século II, composta por 50 biografias curtas de personagens do mundo político greco-romano para que servissem como exemplo aos futuros estadistas e herdeiros das casas reais. No Renascimento, foi a vez de Erasmo de Rotterdam com ‘A Educação do Príncipe Cristão’, de 1515, escrito para atender a formação do então jovem Carlos V, que iria a se tornar ‘Imperador do Mundo’, enquanto que Maquiavel em Florença encerrava a redação do seu ‘O Príncipe’, em 1521, obra que se tornou um manual político universal.
Rousseau, alma plebeia e democrata, voltou sua atenção para educar alguém comum, um ‘aluno imaginário’ que não tinha raízes na alta sociedade, alguém vindo do mundo dos anônimos que ele batizou com o singelo nome de Émile (Emilio). O garoto em seus primeiros anos de formação não frequentou escola, passando longe dos bancos escolares. Rousseau recomendou que lhe fossem apresentados livros somente aos 15 anos, idade dos albores da razão, para que desta forma o estado natural em nascera e fora até então mantido se mantivesse intacto e sua boa alma não se visse perturbada por nenhuma ideia ou tendência que pudesse infelicitá-lo.
O modelo de instrução que ele então advogava repetia o do passado clássico, quando cada rapazinho tinha um preceptor ou um tutor que lhe indicava os bons caminhos do aprendizado e da vida. Avesso à autoridade, o pensador reservava ao preceptor um papel discreto, uma espécie de guia confiável apto a fazer o aluno escapar das pequenas armadilhas da existência. Neste espaço de tempo Émile crescia sem ver seu corpo castigado por varas ou sua mão inchada pelo castigo da palmatória. Mas isto não significava atender ao capricho da criança, pois tal concessão significava a ruína de um projeto que ele supunha ser bem-sucedido. Alimentado desde as primeiras horas pelo leite materno, andava sempre mais próximo da natureza possível. Quanto mais tempo ele tardasse em frequentar a sociedade maior seriam suas oportunidades de manter-se fiel à bondade natural. Sim, porque Rousseau entendia que todos os malefícios que os homens e as mulheres sofriam decorriam do convívio em sociedade.
Era a sociedade/civilização que de certa forma obrigava-os a serem falsos, a mentirem, a serem hipócritas, a externar pensamentos que não eram os seus próprios. Ele percebera, quando frequentara os salões de Paris, que a maioria das pessoas vivia como se estivesse num teatro representando personagens que nada tinham a haver com a sua autêntica personalidade ou maneira de ser.
Devemos lembrar que ao longo do século XVIII todas as pessoas que frequentavam os ambientes sociais (aristocratas, nobres e burgueses), que se reuniam nos palácios e nas mansões, que se faziam presentes nas festas, usavam peruca (homens e mulheres), usavam maquiagem (homens e mulheres) e vestiam-se com extravagância (meias de seda, calças de cetim, casacos de fustão coloridos, etc.), recorrendo muitos deles às mascaras nas noites de bailes. Homens usavam salto alto para disfarçar a baixa estatura, enquanto as mulheres recorriam aos espartilhos e anquinhas para realçar as formas que não eram as delas. Não se esquecendo de mencionar os exageros do ruge, do batom e das unhas pintadas.
Em sociedade, enfim, todos aparentavam ser outra coisa do que realmente eram. E o que ocorria com o figurino deles repetia-se com os sentimentos, fingindo emoções falsas, simulando afetos que não cultivavam, disfarçando os ódios que os embalavam por detrás de sorrisos e afabilidades enganadoras. Era contra esta encenação social que ele se voltou, pregando o retorno às relações naturais e autênticas.
E isto só poderia ser retomado se os homens voltassem a frequentar a natureza, se fizessem como ele, que se tornou adepto das caminhadas em meios aos bosques e pradarias colhendo plantas para o seu herbário. Para escapar das armadilhas da civilização somente o ambiente natural tem o poder de salvar o homem da perdição da vida social.
Se o ser humano nasce bom, o castigo físico é um crime, uma brutalidade inútil que somente avilta a criança e a predispõe à mentira e à falsidade para escapar das punições severas. Igualmente de nada lhe serve a instrução religiosa. O pensador acreditava que cada um escolheria sua fé quando atingisse a idade da razão, sem a imposição de padres ou pastores instrutores. Ele, pessoalmente, simpatizava com ‘a religião da humanidade’ acreditando haver em cada um de nós uma inclinação humanitária natural que nos predispunha a ajudar o próximo e a socorrê-lo sem que fosse necessário consultar os Livros Sagrados ou ser ordenado por um sacerdote.
Também rejeitou no seu ensaio pedagógico usar como exemplo a vida dos grandes estadistas e príncipes do passado. Apesar de ser um admirador confesso de Plutarco, que enalteceu os estadistas célebres, Rousseau procurou mostrar que muitos deles eram homens infelizes, que apesar do poder e da riqueza que concentraram não conseguiram ter uma vida saudável, tornando-se amargurados e solitários em meio a famílias destruídas pela cobiça e pela inveja.
Émile devia seguir era o seu coração, não precisava imitar ninguém, pois quanto mais mantivesse a originalidade dos seus sentimentos mais próximo da felicidade se encontraria.
Reação hostil
O livro de Rousseau foi condenado em todas as partes como um manual ateu, como obra de um anti-Cristo, um pensador que mesmo dizendo-se cristão queria suprimir com o cristianismo. De Paris, enviaram um decreto de prisão e, pouco depois, a Universidade de Sorbone emitiu um decreto de censura, em agosto de 1762.
O que mais pessoalmente o atingiu foi a determinação do Pequeno Conselho de Genebra, sua cidade natal, ter ordenado a incineração da obra pela mão do carrasco, em junho de 1762. O que o levou a escrever as memoráveis Cartas Escritas da Montanha (Lettres écrites de la montagne, 1763-1764), em defesa do Émile e do Contrato Social, que foram publicados no mesmo ano de 1762. E, também, no ano seguinte, o anuncio do seu rompimento com a cidade e a rejeição do titulo de cidadão de Genebra.
Refugiado num lugarejo suíço chamado Motiers, em setembro de 1765, ele foi vítima de um apedrejamento incitado por um pastor que atiçou a população local contra ele, incidente que felizmente não provocou maiores consequências, mas o assustou o suficiente para ele exilar-se em Londres.
Voltaire, inimigo declarado de Rousseau, achou os livros dele ‘obras de um louco’ e que bem mereciam o destino das chamas. Gradativamente, o texto de Rousseau se destacou das demais obras dos iluministas fazendo dele o melhor representante do movimento e um dos mais influentes pensadores que a França produziu até o surgimento de Jean Paul Sartre na segunda metade do século XX.
Bibliografia
Dent, N.J.H. – Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
Goyard-Fabre, Simone (org.) - Politique de Rousseau.Montmorency: Musée Jean-Jacques Rousseau, 1995.
Rousseau, Jean-Jacques – Emilio ou da educação. São Paulo: Difel, 196
Rousseau, Jean-Jacques – Oeuvres completes. Paris: Éditions Du Seuil, 1971, 3 v.
Starobisnki, Jean – Jean-Jacques Rousseau, a transparência e o obstáculo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.