Estados Unidos e México, a fronteira e a grande cerca

12 jan 2019 - 12h42

As relações dos Estados Unidos com o México, descontando-se alguns anos de calmaria, quase sempre foram tensas. Sem ter acidentes geográficos significativos que impedissem o trânsito de um lado para o outro, a linha de separação entre os dois países, fixada pelo Tratado de Guadalupe-Hidalgo, de fevereiro de 1848, se parece a uma porta giratória. Com o crescimento extraordinário da economia norte-americana no século XX, milhares de mexicanos, passando pelos vaus do rio Grande, ou atravessado por todos os meios possíveis as crestadas e  espinhosas terras dos desertos, alcançaram o outro lado da fronteira em busca de uma vida melhor. O governo norte-americano, cansado de caçá-los com as patrulhas e guardas aduaneiras, quer dar um fim aquele corredor erguendo, a partir de 2007,  uma extensa cerca de mais de mil quilômetros.

O correto (D. A.Siqueiros, 1954)
O correto (D. A.Siqueiros, 1954)
Foto: Reprodução

O reino espanhol da América do Norte

Coube ao navegador aragonês don Tristán de Luna y Arellano (1519 – 1571), ter sido o primeiro a fundar um assentamento na Flórida do Oeste, em 1559. Ele fazia parte do rol de conquistadores espanhóis, cujo nome mais flamejante e afamado foi o de Hernán Cortês, que desembarcara um tanto mais abaixo, no México, quarenta anos antes, em 1519. O local escolhido por Tristán de Luna  foi a baia de Pensacola, no Golfo do México,  e teve seu curto destino tolhido por um devastador furacão que dois anos depois, em 1561,  arrasou com as choupanas recém erguidas pelos marinheiros  e destruí-lhe a pequena frota. Melhor empenho teve um outro assentamento, o de Santo Agostinho, fundado na costa atlântica da Flórida pelo almirante Pedro Menéndez de Avilés, em 1565,  e que se tornou de fato o primeiro povoamento hispânico que se afirmou por aquelas bandas.

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A costa oeste do continente norte-americano, por sua vez, somente foi ocupada pelas missões espanholas durante os séculos XVII e XVIII, ocasião em que um verdadeiro colar de reduções (San Diego, Santa Ana,  Santa Mônica, Santa Bárbara, Santa Maria, Santa Cruz, San José, Santa Rosa,  Los Angeles, San Francisco, etc...) se estendeu pelas margens do Oceano Pacífico,  entre os anos de 1602 e 1806.  

         Os dois lados oceânicos controlados pelos espanhóis, num arco de mais de 6 mil quilômetros de extensão, que compreendia as áreas do Texas (subdividida entre o  Novo México, Nevada, Utah, Arizona, Colorado) e da  Califórnia, faziam parte do império ibérico da América. Imensa área semi-desocupada  povoada por apaches, navajos, comanches, e inúmeras outras tribos indígenas,   submetida administrativamente ao vice-reino da Nova Espanha (1525-1821), com capital na cidade do México. Território esse que foi incorporado à republica mexicana após a Independência, até que o desastrado general Santa Ana a perdeu para os Estados Unidos na Guerra Americano-Mexicana de 1846-8. Na ocasião, o México viu-se obrigado a ceder 55% do seu território: ou seja 1. 360.000 km². Cedência que foi complementada alguns anos depois  pelo Gadsden Purchase, de 1853-4 que envolveu a compra de mais 70.770 km² de território fronteiriço.

A Teoria Bolton

Esta clamorosa presença das possessões espanholas da América do Norte, com o passar dos anos, simplesmente foi banida do ensino da história nos Estados Unidos. Os estudantes eram levados a acreditar que todo os milhares de acres integrados à União compunham uma terra de ninguém, um colossal vazio, um deserto a espera dos colonos ianques em sua marcha triunfal pelas planícies do oeste. Foi contra esse “esquecimento” que o historiador Herbert Eugene Bolton se voltou quando publicou seu seminal ensaio sobre a Spanish Borderer, a Fronteira Espanhola (edição da Universidade de Yale, de 1921). Para ele era inadmissível apagar-se a presença das reduções franciscanas, dos ranchos e presídios erguidos e  pelos espanhóis e que compunham um colar de povoamentos que se estendia de um oceano ao outro. Como podiam os norte-americanos ignorar os nomes da maioria daqueles estados, cidades e acidentes geográficos que mantinham seus nomes originados dos conquistadores e povoadores espanhóis? Bastava passar os olhos pelos mapas dos estados do oeste e do  sul dos Estados Unidos para verificar isso.

A intenção dele era deslocar o eixo das atenções historiográficas norte-americanas - centradas excessivamente sobre os anais da Treze Colônias fundadores da União -  para o Oeste, para o Golfo do México e para a Califórnia. A historia dos Estados Unidos não podia ser entendida em relação aos países europeus mas sim em conjunto com as demais nações continentais.

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Num comunicado feito num encontro de historiadores no Canadá,  afirmou que “no meu próprio país o estudo das Treze Colônias Britânicas e dos Estados Unidos, isoladamente, obscureceu os diversos e variados fatores do seu desenvolvimento, impulsionando a ascensão de uma nação de chauvinistas. Distorção similar ocorrera no ensino e na redação da história nacional de outros países da América” (47º Encontro Anual da American Historical Association,  Toronto, 1932)

De certo modo, Bolton abriu caminho para que, uns anos  mais tarde, o presidente Franklin D. Roosevelt impulsionasse a Good Neighbor Policy, a Política da Boa Vizinhança (1933-1941), aproximando-se das republicas latino-americanas, abandonando assim a “diplomacia das canhoneiras” dos seus antecessores do partido republicano.

No que veio a se consagrar como a Teoria Bolton,  o estudo da história da América jamais poderia confinar-se a um só país, visto ela ser uma história hemisférica, resultado dos fatores em comum do desenvolvimento do Hemisfério Ocidental, privilegiando-se o incremento das relações interamericanas como um imperativo dos Estados Unidos. Uma larga e ampla visão da história da América era essencial não somente por suas implicações políticas e comerciais, “mas igualmente desejável sob o ponto de vista da correta historiografia”. Entre elas, o fato de haver um conjunto de denominadores em comum que identificavam a América anglo-saxã com a restante, tais como terem sido colonizadas por metrópoles européias, terem conhecido o mercantilismo e a escravidão, terem subjugado as nações indígenas e, por fim,  constituído estados-nacionais no pós-independência. Compunham assim, norte-americanos e ibéricos,  o “Épico da Grande América” composto por duas ondas colonizadoras: uma delas anglo-saxã e a outra ibérica (ver Mario T. Garcia -“The Bolton Theory and Chicano History”, 1972).

Resumindo, a determinação de Bolton era no sentido de que os norte-americanos deixassem de olhar apenas para si e para os Pais Fundadores e contemplassem os demais povos e nações com quem compartilhavam o continente. O segredo da história da América, por assim dizer,  estava ali, bem próximo,  e não em comparações improcedentes com os estados europeus. Ele não se deteve apenas na intenção. Durante anos tratou de publicar tudo o que encontrara em arquivos sobre as antigas ocupações espanholas na América do Norte, levantando um farto material para pesquisas futuras, resgatando assim aquela historia da orfandade em que se encontrava, retomando as incursões feitas na América do Norte por Ponce de León (na Flórida), Lucas Vázquez de Ayllón (nas Carolinas),  Panfilo de Narváez (na Flórida e no Golfo do México), Hernando de Soto (na Florida, Carolinas e Texas), Juan de Onate (no Novo México),  Francisco Vazques de Coronado (pelo sudoeste da América do Norte), e os desbravamentos náuticos feitos por  Juan Rodriguez Cabrillo e Sebastian Vizcaino (na costa do Pacífico), um em 1542 e o outro em 1602.(*)

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(*) A geração seguinte de historiadores norte-americanos, acreditando que Bolton havia sido deveras complacente com a presença espanhola, criticou a presença dos ibéricos (padres missioneiros, rancheiros e funcionários reais), por haverem inoculado doenças devastadoras nas reduções indígenas, enquanto que os fidalgos e funcionários, nas haciendas ou nos presídios, exercitavam o despotismo tratando os nativos como servos condenados ao inteiro dispor deles.

Até 1821, a América do Norte espanhola ia do Atlântico ao Pacífico
Foto: Reprodução

A invasão dos chicanos

Se bem que a presença de gente vinda do México sempre foi uma constante nos estados mais meridionais  dos Estados Unidos, o fluxo dos chicanos(mexicanos que vivem nos Estados Unidos) aumentou extraordinariamente deste a eclosão da Segunda Guerra Mundial. A transformação da Califórnia num grande celeiro de alimentos e de industrias estratégicas (como as da aviação e bélica), abriu milhares de oportunidades para a gente simples do outro lado da fronteira. As enormes plantações e os empregos indiretos ligados à industria aeroespacial e das armas, fez com que a mão-de-obra mexicana fosse bem vinda. O mesmo ocorrendo no Texas com o aceleramento da prospecção do petróleo, quando milhares de peões foram contratados pelas companhias exploradoras. Os salários do lado americano eram dez ou quinze vezes mais alto do que do outro, fazendo com que a imigração fosse cada vez mais incontrolável.

O abismo econômico que separa os pobres estados do norte do México (Baixa Califórnia, Sonora, Chihuahua, Cohauila,Nova Leon e Tamaupilas)  do verdadeiro El Dorado representado pela prosperidade californiana-texana, tornou irresistível a penetração clandestina de trabalhadores braçais e jornaleiros fugidos dos pueblos miseráveis e das cidades estagnadas do México. Atravessaram a “Cortina Mágica” por onde podiam para ir encontrar um trabalho e um salário mais digno em ranchos e cidades americanas. Nos começos do século XXI estimou-se o número de chicanos e outros “ latinos” em trinta milhões, sendo que dez milhões deles em situação de  clandestinos, vivendo em permanente sobressalto, temerosos em serem capturados pela polícia aduaneira norte-americana e serem deportados, condenados a uma vida de pobreza e desesperança total. (*)

Do lado norte-americano quem até hoje  melhor captou literariamente a tensão existente entre os dois mundos , o dos mexicanos e os americanos, que habitam aquela extensíssima fronteira de pouco mais de cinco mil quilômetros, foi o escritor Cormac McCarthy ( nascido em 1933), um homem de El Paso,  quase sempre recluso em seu rancho de onde somente sai para viagens pelas redondezas para buscar material e inspiração para seus livros. Seus personagens, jovens vaqueiros,  levam a vida entrando e saindo do México, percorrendo “ o caminho dos lobos e as trilhas dos homens”,  ao estilo dos velhos caubóis para quem a fronteira era apenas uma ficção. Não sem motivo a sua obra central é uma trilogia intitulada The Border Trilogy, Trilogia da Fronteira ( composta pelos livros “Todos os belos cavalos”, 1992; “A Travessia”, 1994; “As Cidades da Planície”, 1998).

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(*)   O triste destino de muitos  deles, dos chicanos, serviu de inspiração a um famoso ensaio do poeta mexicano Octávio Paz (El labirinto de la solitud, 1950), inspirado no drama dos emigrados  que, por serem desprezados pelos norte-americanos e não mais aceitos pelos mexicanos, terminam por viver num vácuo psicológico e cultural - no labirinto da solidão, como é o caso dos “pachucos” (jovens descendentes de mexicanos nascidos na América).Os dados censitários mais atualizados indicam que a população hispânica representa 11% da população total dos Estados Unidos, que é de 300 milhões; 56% deles já nasceram em território americano, sendo que 26% dos chicanos  vivem em condições de pobreza, o que faz com que seja muito alto o envolvimento deles em gangues e  atividades delinqüentes como assaltos e trafico de drogas.É isso que contribui para que os republicanos ganhem apoio em fazer passar no Congresso  uma legislação cada vez mais restritiva à presença dos mexicanos clandestinos (Fonte: Censo dos Estados Unidos sobre a População Hispânica).

Uma vitima da repressão (David A. Siqueiros, detalhe de mural)
Foto: Reprodução

A Grande Cerca

Aproveitando-se do clima de insegurança nacional gerado pelos ataques de Onze de Setembro, o governo republicano do Presidente George Bush apresentou um projeto para ampliar o tamanho das cercas que já existem na região fronteiriça, erguendo uma outra, bem maior, a Big Borderer Fence ou Border Wall,  com  1.126 quilômetros de extensão, para evitar a entrada clandestina, principalmente de possíveis terroristas vindos do Oriente Médio. Conta para isso com a adesão de grande parte da população e da aprovação da Câmara dos Deputados ( 260 x 159), exceção feita aos mexicanos e seus descendentes que entendem o muro como uma agressão voltada  especificamente contra eles,  os tão desprezados cucarachas. Ao ver deles, trata-se de um impedimento um tanto racista negadora da própria história norte-americana que sempre  promoveu a acolhida dos desgraçados da terra, oferecendo-lhes trabalho duro, moradia e prosperidade. Seja como for, a obra retomada pela administração Donald Trump, cujo custo foi estimado em U$ 5 bilhões,  somente servirá para azedar as relações sempre tensas entre aqueles dois povos.

Bibliografia

Bolton, Herbert Eugene – The Spanish Borderlands: a Chronicle of Old Florida and the Southwest. By Herbert E. Bolton. Chronicles of America, series, Vol. XXIII. New Haven, Yale University, 1921.

Bolton, Herbert Eugene - The Epic of Greater America, in Bolton, Wider Horizons of American History. Nova York, 1939.

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Del Castillo, Richard Griswold - The Treaty of Guadalupe Hidalgo: A Legacy of Conflict, Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1992.

Garcia, Mario T. – The Bolton Theory and the Chicano History, 1972.

León, Ricardo – “Dos Méxicos”, uno más olvidado que otro. Ciudad Juarez, México, Araucaria, Revista Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades, Año 2, nº 4, 2000.

McCarthy, Cormac – A Travesía. São Paulo:Companhia das Letras, 1999.

McCarthy, Cormac – As cidades da planície. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Weber, David, J. – The Spanish Frontier in North America, New Haven, Yale University, 1992.

Weber, David J. - The Spanish Borderlands of North America: A Historiography, reedição da OAH Magazine of History nº 14, 2000.

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Fonte: Especial para Terra
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