Desde o impeachment de Fernando Collor, em 1992, o Brasil não vivia momentos tão efervescentes como agora, ainda que motivos não tenham faltado para que o povo fosse às ruas antes. De escândalos políticos como o do mensalão, a partir de 2005, a diversos crimes do colarinho branco praticados por pessoas dos mais diferentes setores e que devastaram cofres públicos, a população assistiu de longe ao Brasil avançar em campos como o econômico, enquanto abandonava áreas básicas como educação, saúde e segurança. Mas, afinal, o que faz com que uma nação acorde depois de tantos anos e volte a tomar as cidades para protestar contra a opressão do sistema?
Segundo o historiador Voltaire Schilling, que vê nestes protestos de 2013 semelhanças com a passeata que reuniu mais de 100 mil pessoas contrárias à ditadura em 1968, nunca se sabe. "Na ditadura, sabia-se perfeitamente. Hoje, não", comenta o professor, que vê no movimento atual traços claros do anarquismo. "Se vê a hostilidade completa a qualquer político profissional. Esses jovens não se identificam com nenhum dos cerca de 30 partidos que existem. O anarquismo se revolta contra as instituições vigentes. Os ataques são contra prédios que representam o poder. Mesmo que nem todos saibam, esses jovens estão agindo de acordo com os preceitos anarquistas", avalia.
Para Voltaire, há ainda uma clara influência da Primavera Árabe agindo nos protestos nacionais. O perigo, destaca, sempre é a resposta que o Estado pode acabar dando. "Pode haver uma reação fascista mais tarde", alerta o historiador, ao lembrar que, em 1968, a resposta às manifestações populares foi o Ato Institucional Número 5 (AI-5).
Leia a seguir a entrevista completa com o historiador Voltaire Schilling.
Terra - Há muito tempo o Brasil não vivia momentos tão agitados como agora. Nos anos 1960, tivemos marchas contra a ditadura. Nos anos 1980, o Diretas Já. Menos de 10 anos depois, os Caras Pintadas. Por que um país que já havia experimentado o gosto de ir às ruas protestar fica tanto tempo desmobilizado? O que acaba se tornando a gota d'água para que o espírito de luta reapareça?
Voltaire Schilling - Na verdade, nunca se sabe. Na ditadura, sabia-se perfeitamente. Hoje, não. Não há um inimigo único. É um conjunto de fatores. Os protestos não querem, por exemplo, derrubar a Dilma, ou o Alckmin, ou o Cabral. Até pode ter grupos menores querendo isso, mas a massa mesmo protesta contra coisas mais genéricas. Há um mal estar profundo com casos de corrupção, com a ineficácia do mundo político perante o cotidiano da população, em que, por um lado, se produz gastos extraordinários, por outro, se faz a população sofrer com a falta de qualidade em serviços básicos - ainda que, se fizermos uma retrospectiva história do Brasil, estamos relativamente bem: o Brasil continua crescendo, mesmo que não seja a um ritmo excepcional; tem inflação, mas ela não impede que se tenha pleno emprego. Em outros momentos, essas ondas de protestos ocorriam em momentos de instabilidade geral, de pleno desemprego, superinflação...
Baixar o preço da passagem é possível, mas as outras bandeiras são de difícil verificação. Chega de corrupção? Claro que chega! Ok, mas como vamos medir isso?
Terra - De que forma temos que olhar para esse foco múltiplo que abastece os protestos?
Voltaire
- Primeiramente, temos de analisar os aspectos de ordem interna. E, internamente, o movimento tem características anárquicas. Não no sentido de baderna gratuita, que fique claro, mas da filosofia política, da ideologia do movimento. Veja a bandeira deles:
são contra partidos e contra todas as formas de organização que possam representar repressão. Eles não participam de eleições, por exemplo. Não se identificam com nenhum dos cerca de 30 partidos que existem no Brasil. Eles pregam a hostilidade completa aos políticos profissionais, decorrente dessa não identificação com partidos. Tanto que os políticos sequer ousaram aparecer nos protestos. Pelo menos não se vê nenhum governador, prefeito, vereador, deputado, ministro... Se aparecerem, provavelmente serão vaiados ou até mesmo, espancados [
o MPL condenou ataques a grupos políticos]. Não há qualquer identificação da massa com partidos políticos de nenhuma expressão da classe política profissional. Classe que ficou completamente à margem desse processo, e assim vai continuar.
O que é Anarquismo? |
Teoria social e movimento político, com presença atuante na história ocidental durante o século 19 e na primeira metade do século 20, que sustenta a ideia de que a sociedade existe de forma independente e antagônica ao poder exercido pelo Estado, sendo este considerado dispensável e até mesmo nocivo ao estabelecimento de uma autêntica comunidade humana; qualquer ataque ou afronta à ordem social estabelecida ou aos costumes reinantes. Anarquia socialista: vertente clássica e hegemônica do anarquismo teórico e prático que preconiza a substituição da propriedade privada e do poder estatal por uma organização social baseada na coletivização dos meios de produção, na democracia direta (não representativa), e na autonomia política e econômica de pequenas comunidades confederadas. |
Fonte: Dicionário Houaiss |
O anarquismo se revolta justo contra as instituições vigentes. Veja que os ataques são, majoritariamente, contra prédios que representam o poder: prefeituras, Alerj, Congresso Nacional, sedes de governos estaduais. Mesmo que nem todos esses jovens saibam, eles estão cumprindo um programa anarquista, agindo de acordo com os preceitos anarquistas. Se olhar o simbolismo, verá que as características da anarquia são claras.
Não adianta um grupo se reunir com o Haddad para negociar, por exemplo, pois esses protestos não possuem um cérebro, um líder. Esses jovens do Movimento Passe Livre representam apenas alguns dos centenas de grupos que se uniram para fazer as manifestações, e sempre vai haver alguém para dizer que eles não o representam. Os grupos são multifacetados, e há anarquistas pacifistas e violentos. Sempre houve esse conflito interno.
Como não existe um cérebro por trás controlando, você nunca vai ter o controle sobre a massa. Uma parte sempre vai se sentir prejudicada, não representada.
Por isso é tão difícil um diálogo entre as partes?
Voltaire
- É muito difícil. Vai dialogar com quem? Com a multidão? No dia da inauguração do Estádio Nacional Mané Garrincha, a Dilma pediu para o Gilberto Carvalho ir até o lado de fora conversar com manifestantes que protestavam. Mas quem disse que ele foi ouvido. É impossível. Aliás, nem é esse o objetivo de uma manifestação. Naquela hora, não é diálogo que se quer, é protesto.
Terra - Que semelhanças o senhor vê entre essa mobilização e outras que ocorreram no Brasil?
Voltaire - Esta lembra um pouco a manifestação de 1968, que também desprezava a classe política, inclusive aquela dos que pertenciam ao MDB, pois achavam que estes eram coniventes com a ditadura. A juventude não se articulou com os políticos.Um elemento completamente novo no cenário atual é essa espécie de descrença na esquerda. Em 1968, houve uma revolta popular contra a direita. Agora, os manifestantes hostilizam também a esquerda. E, pela primeira vez, a esquerda está no poder e se vê excluída dessas manifestações - com exceção, talvez, de pequenos partidos de esquerda, mas até esses já estão sendo rejeitados pela massa. Há uma revolta contra a esquerda e os partidos de centro-esquerda.
Terra - É cedo para falar em uma "Primavera Brasileira"? O que o senhor acha dessa comparação?
Voltaire
- Tem uma força muito grande agindo que é o mimetismo, a vontade de querer imitar aquilo que vemos. Grande parte da juventude brasileira viu o que aconteceu na Tunísia, no Cairo, e está vendo o que está acontecendo na Turquia. E isso tem um peso muito grande. Não passa um a dia sem que a mídia noticie um acontecimento nesses lugares. E olha que o Erdogan não é ditador, ele foi eleito. Mesmo assim, está recebendo uma carga de protestos gigantesca.
Então, faz parte desse cenário de globalização sofrermos influências de outros lugares. É bem aceitável a comparação.
Terra - Que relação se pode fazer com o fato de o Brasil estar sediando grandes competições esportivas?
Voltaire
- Olha o que se gastou em estádios. É como se estivéssemos construindo uma nova Brasília. Termos estádio novo em Manaus, em Fortaleza, no Distrito Federal, em Salvador, além de outros que foram reformados, como o Maracanã. Isso exige muito gasto interno, de infraestrutura, reforma urbana. E isso também exerce uma pressão inflacionária, como na época em que se construiu a capital federal. E os efeitos disso, dos gastos e, depois, do que fica, nós só vamos sentir muito mais tarde. Não há país no mundo que não seja atormentado por um índice inflacionário com gastos tão altos como esses.
Terra - O que pode mudar no Brasil a partir desses protestos?
Voltaire
- Pode haver uma reação fascista mais tarde. É uma possibilidade. Tem que cuidar para não levar isso como em 1968, quando o movimento foi indo até que a resposta foi o AI-5.
Imagina uma cidade como São Paulo em que as pessoas não conseguem mais chegar em casa por causa dos protestos. Uma hora aquele grupo que não vai às ruas, silencioso, começa a se mexer.
Terra - Por que as manifestações foram mais fracas no Nordeste?
Voltaire
- Tem sido a região do Brasil mais favorecida com a administração da esquerda. Desde o governo João Goulart, que criou a Sudene (
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) para, de alguma forma, gerir a prosperidade lá. Ela arrecadava recursos no sul e distribuía recursos no Nordeste. Essa bandeira foi retomada nos governos Lula e Dilma, para atenuar as enormes diferenças que existem entre as regiões do País. É só você pegar os indicadores do Nordeste para ver que são muito ruins. Comparando com o restante do Brasil, é como colocar lado a lado números de África e Europa.
Por isso a contestação não existe na mesma dimensão no Nordeste. Os maiores dependentes do Bolsa Família você vai encontrar lá.
Terra - Normalmente, quando movimentos assim começam pelo mundo, o que vem a seguir?
Voltaire
- Todos os movimentos que ocorreram pelo mundo se esvaíram por si mesmo. No que deu o Occupy Wall Street, em Nova York? Ou o Los Indignados, na Espanha. Em nada. Na Grécia também, ainda que em outras circunstâncias.
Agora, nos países árabes foi diferente. Mas lá havia uma causa muito palpável. É muito mais fácil ter um inimigo facilmente identificável. Mas, voltando, quem é o inimigo aqui no Brasil, que permita um catalisador dos movimentos? Os Caras Pintadas tinham o Collor. Pediram que ele renunciasse, o que ele terminou fazendo. Mas agora, ninguém está na rua para derrubar um governador específico. A perspectiva é gradativamente ir sumindo o movimento. A democracia tem essa característica. Você concorda com o movimento, acolhe ele, mas ele vai se esvaziando com o tempo.