Kafka e o horror à burocracia

2 nov 2018 - 10h46
(atualizado às 10h54)

Franz Kafka, falecido aos 40 anos em 3 de junho de 1924, no Sanatório de Keerling, perto de Viena, sem dúvida alguma, foi um dos mais enigmáticos escritores do começo do século 20. Sua narrativa — de raiz expressionista — parece-se a um mosaico cujas partes não se afinam, como se colocasse um quadro após o outro sem que houvesse uma ligação mais ativa entre eles. O que os une é um tema oculto que paira impassível e impune sobre tudo: o Poder da Burocracia. Força anônima que impera. O escritor tcheco de língua alemã consagrou-se, entre tantas outras coisas, como um dos primeiros literatos denunciadores da poderosa e quase invisível máquina de moer seres humanos que, ao longo do século 20, passou a controlar tanto as sociedades do Ocidente como do Oriente, não importando a ideologia a que se punham ao serviço.

Franz Kafka, um dos mais enigmáticos escritores do começo do século 20.
Franz Kafka, um dos mais enigmáticos escritores do começo do século 20.
Foto: Divulgação

Da Burocracia

Tornado ‘filósofo oficial’ do regime prussiano, G.F.W. Hegel definiu na Rechtsphilosophie (‘A Filosofia do Direito’, 1821) a burocracia como um estrato especial que não se vinculava a classe alguma e, altiva, afirmava-se por agir em função do ‘bem comum’. Nenhum particular poderia sequer imaginar que ela atuasse em favor de A ou B.

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Na sua essência ela era neutra e no geral incorruptível. Obedecendo ao seu Senhor - Estado (o imperador, o rei ou o príncipe) dizia atender as necessidades dos súditos ou dos vassalos sem ver rosto ou posição deles. Todos lhe eram iguais.

Na percepção dela era uma ‘classe universal’, entendendo que os princípios gerais e lógicos do seu funcionamento — tal como o ‘imperativo categórico’ de Kant —  se repetiam em qualquer canto do mundo onde houvesse uma sociedade organizada. Propunha-se como a essência do Poder do Estado, o principal instrumento da sua coesão. Não há Estado civilizado sem Burocracia e vice-versa.

Pouco mais de vinte anos depois, coube a Karl Marx, um ex-hegeliano, exercer uma contundente crítica ao velho mestre no seu ensaio Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, (‘Crítica à Filosofia do Direito de Hegel’, 1843), no qual refuta a tese da neutralidade da burocracia. Para Marx ela não tem nada de imparcial.

Ao contrário, estrutura-se como uma engrenagem subdividida em departamentos, seções e subseções, à inteira disposição das classes dominantes (proprietários de terra, capitalistas, banqueiros, grandes mercadores, etc.), que fazem largo uso dela sem precisarem recorrer à violência. Coage seus dependentes ou a população por meio de infindáveis regulamentos e ordenações impondo a obediência dos subalternos. É, acima de tudo, uma ferramenta de controle social.

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Ainda que eventualmente ela possa voltar-se contra alguém da alta hierarquia social, por exemplo, forçar um barão ou um mercador a acertar seus impostos, é um episódio circunstancial e de rara repetição. A sua meta política é manter a maioria disciplinada e afinada com as determinações que emanam dos estratos superiores dominantes e que tem no funcionário (Beamte) seu fiel executor.

Por conseguinte, longe de pairar sobre a sociedade, ela  está sempre a serviço dos ‘de cima’. O que fez mais tarde o sociólogo Max Weber afirmar que ela provou ser ‘ o meio formal mais racional que se conhece para lograr um controle efetivo sobre os seres humanos”. 

Este mesmo Max Weber, no seu clássico Wirtschaft und Gesellschaf, ‘Economia e Sociedade’, de 1922) a exaltou como uma ‘organização eficiente por natureza chamada para resolver racionalmente os problemas da sociedade e das empresas’.

Estava projetada como um macro-utensílio para operar cientificamente nos moldes estabelecidos pela hegemonia da tecnologia imposta pela Revolução Industrial e pelas exigências do Iluminismo. No mundo moderno ela é a mais representativa herdeira dos propósitos dos filósofos do século XVIII de administrar a sociedade de acordo com as leis da objetividade e da eficácia, sem deixar-se influenciar pelos fidalgos e pelo clero e, menos ainda, pelo povo.

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Origem da visão negativa de Kafka

Destruido pela tuberculose, Franz Kafka descendia da pequena comunidade judaica da Boêmia de fala alemã radicada em Praga, na Tchecoslováquia (então parte do Império Habsburgo). O idioma tcheco era-lhe conhecido, dominava-o perfeitamente, porém nunca se sentiu atraído em escrever naquela língua como tanto insistia sua derradeira companheira Dora Diamant.

Sobre isto ele comentou:  O alemão é minha língua materna, mas é o tcheco que me toca o coração (Deutsch ist meine Muttersprache, aber das Tschechische geht mir zu Herze).

Filho de um próspero negociante judeu Herrmann Kafka, Franz conseguiu formar-se em direito com relativa facilidade. Entretanto, sua verdadeira paixão era a literatura fazendo dele um ser eternamente dividido entre ter que exercer um ofício numa empresa de seguros e, por outro lado, levar uma vida quase que clandestina de escritor (seu pai, um autoritário pragmático, nunca o apoiou nas suas aventuras de homem-de-letras)

É de se cogitar que os relatos dos inextrincáveis labirintos da burocracia, a retórica (i)lógica dos chefes de seção para esconder a irracionalidade de tudo aquilo, veio-lhe exatamente da sua experiência diária de empregado por 17 anos do Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho, em Praga.

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É sabido que as companhias seguradoras, universalmente regidas pela paranóia, sempre temerosas em serem enganadas, esmeram-se nas exigências do cumprimento dos regulamentos e dos infinitos parágrafos que são impostos aos demandantes até lhes pagar o devido. Nesta busca pelas raízes da burocracia, não se deve omitir um fato bem anterior que estava incorporado à historia de Praga desde o medievo. Em 1355 ela se transformara na capital do Sacro Império Romano-Germano e Carlos IV da Dinastia Luxemburgo, seu imperador, fundou a Universidade de Praga, 1348, para formar seus quadros de serventuários. Dali, de Praga, começaram a ser despachadas as diretrizes - escritas em alemão - para os quatro cantos do Heilighe Reich.

Quando Kafka começou a concentrar seu tema, a opressão dos funcionários sobre as gentes transcorriam por mais de cinco séculos e meio.

Há por certo de levar-se em consideração no tipo de prosa que ele recorreu à influência da topografia da capital dos tchecos. Praga possui até os dias de hoje uma trama de ruelas macabras herdadas do período gótico que muito se assemelham aos mitológicos labirintos. Nelas surgem do nada surpreendentes portões de frente para as calçadas que, desvendados, levam para outra parte completamente desconhecida dos passantes, por vezes terminando em enormes casarões tétricos, sombrios, que parecem sempre inabitados.

Estes meandros urbanos medievos-barroco, indecifráveis à razão, certamente devem ter inspirado o escritor desde que ele, estudante primário, percorria o trajeto de casa até a sua escola (ele formou-se num pequeno colégio, o Knabenschule Deutsche, o Ginásio Humanista Nacional Alemão, que atendia os judeus de cultura germânica), situada ‘ bem no coração da cidade onde eu nasci”.

Ou ainda, ao entrar na vida adulta, percorria com seus amigos do Circulo de Praga (Max Brod, seu amigo de sempre, Hugo Bergmann, Gustav Meyrink, Felix Weltsch, Oskar Baum e o romancista e poeta Franz Werfel) as vielas da Altestadt, a Velha Cidade de Praga, em direção ao Café Continental.

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Estes meandros urbanos medievos-barroco, indecifráveis à razão, certamente devem ter inspirado o escritor.
Foto: Divulgação

O maléficio da burocracia

O gênio de Kafka foi ter percebido o transtorno maléfico que tais impertinências tomadas pelos ‘círculos administrativos’ exercem sobre as pessoas comuns. Uma nuvem permanente de desconfiança cobre as relações entre a empresa (estatal ou privada), e o beneficiário ou o solicitante. Trata-se quase de um jogo entre o gato e o rato, sendo que as exigências dela parecem não ter mais fim.

Para ele, esta se tornou a relação padrão do homem da sua época controlada pela aparelhagem burocrática que de fato governava. Não importando a forma ou inclinação do seu regime (monarquia ou república, conservador ou liberal), é o Bürokrat quem dá a última palavra.      

No interminável confronto entre O Corpo de Funcionários que trama as ciladas opressivas contra o Homem Comum, Kafka tomou clara posição a favor dos fracos e dos desamparados. 

‘O Castelo’, símbolo fantasmagórico do moderno poder burocrático inalcançável ao homem comum.
Foto: Divulgação

As novelas e contos dele (especialmente Der Schloss (‘O Castelo’) Der Prozess, (‘O Processo’), In der Strafkolonie ('Colônia Penal'), e tantas outras mais, esforçaram-se em denunciar, consciente ou não,  uma nova forma de jugo que se agigantava na Europa nos começos do século 20. Ela não era necessariamente resultante do conflito de classes como os marxistas defendiam ou da vontade dos poderosos que manipulavam a sociedade, e sim a do anônimo e inamovível funcionário senhor das engrenagens dos procedimentos exigidos pelo estado contra o individuo indefeso. O que o levava ao pânico à neurastenia ou a anomia, similar ao assustador aracnídeo que levava a minúscula mosca ao desespero.

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O mundo dele é “o das chancelarias, das repartições, dos arquivos, das salas e escritórios mofados, abrigados em edifícios decadentes”. E, para descrevê-lo, Kafka necessitou de uma prosa própria, original, a fim de desmascarar a demência que enredava o homem contemporâneo. Este se sentiu uma ‘vítima desarmada’ em vésperas de ser triturada pelos poderes quase que sobrenaturais que a burocracia amealhou no tempo contemporâneo.

Para os críticos de origem judaica boa parte da sua literatura tentou reproduzir metaforicamente a sensação de isolamento, incerteza e temor companheiras permanentes da comunidade israelita da Europa em sua totalidade.  Não chegaram a percebê-lo como trágico advinho do Holocausto.

Isto é que fez com que Walter Benjamin entendê-lo como um notável autor de parábolas que podiam ter diversas interpretações. (in ‘Franz Kafka - propósito do décimo aniversário de sua morte, 1934)

O conto de horror mais famoso dele Die Verwandlung, ‘A Metamorfose’, pode ser lido tanto como a situação desesperada do próprio Kafka, aflito e atormentado pelos sabidos rigores impostos por seu pai Herrmann, um tirano que reduzia o filho a um nada, ou ainda como a história de um anônimo qualquer, confuso e aterrorizado perante as armadilhas da vida, percebendo-se um inseto não merecedor qualquer consideração. (*)

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Foto: Divulgação

(*) Alargando-se a metáfora do homem-inseto, se confirma mais uma profecia kafkaniana. Dois anos depois de redigir o terrível conto, começou a Grande Guerra (1914-18), na qual milhares de soldados, equiparados aos insetos, foram exterminados nas trincheiras por gás venenoso. Na Segunda Guerra Mundial ele , o gás,voltou a ser empregado pelos nazistas no massacre dos judeus europeus e de outras minorias. 

Joseph K nas vésperas da morte, envolvido por funcionários e papéis.
Foto: Divulgação

Kafka como profeta

‘Há um tremendo mundo que habita dentro de mim’

Franz Kafka

Os personagens de Kafka (‘K’ no ‘O Castelo’, ‘Joseph K’ no ‘O Processo’, etc.) são tipos quaisquer emaranhados por sutis fios invisíveis manipulados a distancia por peões, os Beamters, sem expressão que os levaram à perplexidade, à impotência ou à morte. Vêem-se ignorados ou esmagados por fatores transcendentais que os paralisam perante a vitória do absurdo e do grotesco. 

Como recomendou um dos seus personagens: “um procedimento um pouco mais ligeiro, uma certa distensão, só cabiam na relação direta com as autoridades, ao passo que no demais era sempre necessário um grande cuidado, um olhar em volta para todos os lados antes de cada passo”. (‘O Castelo’, 2000, pág.93)

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Monstro acéfalo

Nunca se vê a cabeça deste Golias moderno, incansável fabricante de decretos e devorador de papéis: o onipresente grão-chefe da burocracia. (*) 

O cidadão só se depara com seus tentáculos. Os dos meticulosos funcionários que exercem autoridade de vida e morte sobre aqueles que, desgraçadamente, são obrigados a recorrer a eles. Condutores de um mundo infernal, constrangendo suas vidas o máximo que podem (os documentos necessários quase nunca estão completos, sempre observam a ausência de uma assinatura, a expiração de uma data ou a falta de um carimbo, etc.). Os demandantes são vistos pelos burocratas, na maioria das vezes, como Rattenvolk, ‘o povo dos ratos’ (conto de Kafka, de 1924). 

O local — departamento, seção, etc. — que lhes apontam como o habilitado a resolver os seus problemas quase nunca é o exato, constrangendo-os a realizar inúmeras e inúteis caminhadas por corredores e andares fantasmagóricos, com a maioria das portas fechadas e tipos amorfos e carrancudos posicionados atrás do balcão-trincheira sem nenhuma disposição em atender seja lá quem for. Como disse o personagem K de ‘O Castelo’: ‘ E quem precisa de botas nesses caminhos eternamente vazios?”

Matadouros e cárceres

A visão dele, consciente ou não, foi premonitória ao chamar a atenção para este polvo invisível que impera nos bastidores das sociedades modernas. Era a renovação do demônio cuja voracidade pelo poder chega a atravancar até os próprios governos que diz servir. Por outro lado, lhes-é extremamente útil.  

Não podemos imaginar o eficaz controle que os impérios coloniais europeus exerceram sobre os seus súditos e os milhões de indivíduos na África e na Ásia sem o socorro desta aparelhagem multitentacular. 

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Como não nos é possível supor a realização do genocídio nazista ou a administração dos campos de trabalho forçado na URSS (o GULAG) sem a recorrência e conivência das respectivas Máquinas Burocráticas, reaparelhadas como matadouros ou super-cárceres. (**)

Não sem motivos, as infindáveis queixas e reclamos dos cidadãos dos nossos dias, inclusive das altas autoridades e representantes das poderosas corporações, remetem sempre aos entraves e obstáculos criados pela burocracia. O horror a ela é consensual e universal. Ninguém sente coragem ou força para enfrentá-la, escravizados pelos decretos, regulamentos, documentos exigidos, firmas, selos, carimbos e também pelo seu peculiar mau humor, acatam impotentes suas despóticas determinações.

Kafka desafiou duas sólidas interpretações benignas da burocracia: a de Hegel e a de Max Weber, dois expoentes do pensamento alemão. Para Hegel o funcionário (beamte) do estado agia em função do interesse coletivo ou do bem público graças a sua posição no alto do Estado. Esta o permitia vigiar as incorreções da sociedade civil como agir em função da sua melhoria — era um ser universal que pairava sobre tudo. Weber, por sua vez, via a burocracia “formal” e “impessoal” como a realização da razão humana ordenando e mantendo a sociedade civil organizada e obediente a uma ordem superior, legitimada pelas leis e pela eficiência na condução das coisas públicas e  privadas.

(*) Os personagens dele de ‘O Castelo’ e ‘O Processo’, por exemplo, jamais se encontram com a autoridade maior. Joseph K é executado sem saber por qual crime e por qual autoridade mandante. 

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(**) Tanto os nazistas como os stalinistas agiram do mesmo modo às obras de Kafka, proibindo-as. Entenderam-nas, corretamente, diga-se, como um ataque direto às suas máquinas repressivas por expô-las como promotoras da desumanização dos cidadãos, e um monumento à irracionalidade. Na Tchecoslováquia os livros de Kafka foram liberados entre 1945 e 1968, mas logo em seguida à invasão soviética de agosto de 1968 eles voltaram a serem banidos. Hoje, o autor é o orgulho dos praguenses e do governo tcheco pós-comunista e alvo de permanente atração turística.

Obras de Kafka

  • Cenas de um Casamento no Campo (1907)
  • Considerações (1908)
  • Aeroplano em Brescia (1909)
  • Amerika (1910, 1927)
  • O Veredicto (1912)
  • A Metamorfose (1912, 1915) (eBook)
  • A Sentença (1912, 1916)
  • Meditação (1913)
  • Contemplação: O Foguista (1913)
  • Diante da Lei (1914, 1915)
  • A Colônia Penal (1914, 1919)
  • O Processo (1914, 1925)
  • Um Relatório para a Academia (1917)
  • A Preocupação de um Pai de Família (1917)
  • A Muralha da China (1917, 1931)
  • Carta ao Pai (1919)
  • Um Médico Rural (1919)
  • Poseidon (1920)
  • Noites (1920)
  • Sobre a Questão das Leis (1920)
  • Primeiro Sofrimento (1921)
  • Cartas a Milena (1920, 1923)
  • Investigações de um Cão (1922)
  • Um Artista da Fome (1922, 1924)
  • O Castelo (1922, 1926)
  • Uma Pequena Mulher (1923)
  • A Construção (1923)
  • Josefina, a Cantora ou O Povo dos Ratos (1924)
  • Sonhos

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Fonte: Voltaire Schilling
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