Em novembro de 1989, depois de terem ouvido pelo rádio um confuso comunicado das autoridades comunistas sobre a possibilidade dos cidadãos da Alemanha Oriental, a RDA, terem naquela momento mesmo o direito de poderem viajar para o Ocidente, uma massa de gente começou a amontoar-se frente as cancelas que davam passagem pelo muro. Assim, espontaneamente, eles deram os primeiros passos para por fim a existência daquele paredão hediondo que separava os alemães em dois corpos distintos, que apartava a humanidade inteira em duas facções inimigas.
Nós somos o povo!
“Nenhum outro furor nacional, nenhum um outro destino nacional (como o da Alemanha), teve tão grande impacto no século XX”
W.R.Smyser - From Yalta to Berlin,1998
Anoitecia em Berlim. A concentração humana foi se dando aos poucos. Era uma daquelas tardes-noite gélidas de novembro, mas a exaltação dos que se apinhavam nas cancelas da fronteira da cidade dividida fez com que se esquecessem de tudo, do frio e do medo. O grande muro de cinco metros de altura que os separava do mundo, cinzento, farpado, horroroso, se estendia para todos os lados formando um cinturão de mais de 45 quilômetros de extensão (sendo que 37 deles dentro da zona residencial). Era a última noite dele ainda inteiro. Os gritos começaram. O coro aumentava, o refrão era cada vez mais forte: Wir sind der Volk! Wir sind der Volk! (Nós somos o povo!). O longo cativeiro deles estava por terminar.
O 9 de novembro
Os guardas orientais, os outrora tão temidos Vopos, perplexos, embaraçavam-se frente a multidão. Entravam nas guaritas e em telefonemas desesperados pediam instruções. Os seus superiores sumiram; os comunistas se volatilizaram. Do outro lado do muro, em Berlim Ocidental, uma outra massa de gente que para lá acorrera gritava para que erguessem as cancelas. Que deixassem os do leste sair. E assim se deu. Naquela noite de 9 de novembro de 1989, entre os abraços e vivas de irmãos desencontrados, a Alemanha voltava a ser uma só.
Tudo passa pela Porta de Brandeburgo
Confirmava-se o que Heinrich Heine, o poeta lírico, dissera certa vez sobre o alemão ser lerdo em dar o primeiro passo, mas “uma vez se movendo nalguma direção, segue-a até o fim com a mais tenaz perseverança”. Assistiu-se nas cercanias do Portão de Brandeburgo um duplo fenômeno: a reunificação alemã sepultou a Guerra Fria. Para W.R. Smyder, um americano estudioso da política do após-guerra, isso não causou nenhuma surpresa: “Pegue uma mapa qualquer da Europa”, disse ele, “e desenhe uma linha que vá de Paris a Moscou e uma outra que saia de Estocolmo à Roma, as duas linhas farão sua intercessão bem próxima à Porta de Brandeburgo”. As desavenças em torno da posse da Alemanha provocaram o confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética. O consenso entre Reagan e Gorbachev em desocupá-la encerrou-o. Ela atou e desatou a Guerra Fria.
O azar e a sorte da Alemanha
Nesta história toda os alemães até que tiveram sorte. Se a geografia antes lhes fora madrasta, colocando-os bem no centro de uma Europa convulsionada, envolvendo-os obrigatória e diretamente em todas as guerras lá travadas nos últimos três séculos, ela, a posição estratégica que ocupam, os salvou de coisa pior depois de 1945. Os vencedores, tanto os americanos como os soviéticos, em crescente hostilidade, trataram de erguer e fazer prosperar o “seu” lado da Alemanha, dividido entre eles desde os tratados de Yalta e Potsdam.
Estimulados à voltar ao trabalho e pacificados o resultado não demorou a aparecer. A parte ocidental logo galgou a posição do país mais bem-sucedido da Europa. A oriental por sua vez tornou-se a mais avançada do bloco socialista. Encolhida a mão dos ocupantes 45 anos depois, ambas, como poderosos imãs, voltaram a se juntar.
Hegel e a unificação alemã
G.W.F. Hegel, o grande filósofo, há dois séculos atrás, num ensaio constitucional sobre o futuro da Alemanha, o Die Verfassung Deutchlands, 1802, não apostou então nem um níquel no povo alemão, ou suas assembléias provinciais, vir a desempenhar algum dia um papel significativo numa possível unificação. “Eles nada sabem em absoluto”, escreveu o pensador, pois para o alemão comum a questão da unidade nacional era “algo completamente estranha”. O que os alemães precisavam era de um Teseu, um estadista-guerreiro como fôra o ateniense, um conquistador capaz de organizá-los e compeli-los à unidade. Se isso foi premonitório do papel que Napoleão desempenhou durante a ocupação francesa da Alemanha (entre 1806-1813), e mesmo da ascensão do IIº Reich de Bismarck em 1871, o que diria o velho Hegel se visse o que testemunhamos faz dez anos na Porta de Brandeburgo? Lá estava o povo alemão desmentindo-o.
O fim do muro
Confraternizando nas brechas já abertas do muro - aquela altura assaltado por centenas de picaretas e martelos - , sem que ninguém tivesse ordenado, era a gente simples da cidade de Berlim quem no final pôs fim naquilo tudo, seguindo apenas os seus sentimentos mais profundos. Nenhum titã os guiava, sequer um metido a salvador da pátria arengava para eles. Não estavam armados nem furiosos, apenas davam vazão a embriagadora sensação de estarem juntos e livres novamente.
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