“Chamam-se de artistas muitas coisas que no final das contas são obras da natureza”
Friedrich Schlegel “Kritische Fragmente”, 1797.
Data do Renascimento italiano a emergência de um outro paradigma até então pouco referido, a do Gênio - que desde então irá mobilizar as atenções da modernidade. Como um exemplo do instante em que surgiu recorda-se de um incidente menor ocorrido entre o pintor Filippo Lippi e seu mecenas, o poderosíssimo banqueiro Cósimo de Medici, o pai da pátria de Florença.
Lippi, um contumaz bon vivan que por vezes tinha de ser mantido em prisão domiciliar para que trabalhasse, escapou por uns tempos das suas obrigações e em companhia de rameiras esquecia-se da sua tarefa de pintar uns murais do Palazzo Médici. Cósimo, seu protetor, ao invés de castigá-lo, como faria com qualquer subalterno, concluíra, porém que os artistas deviam tratados “com afeto e gentileza” porque percebia neles uma natureza diferente dos demais mortais. Eles tinham gênio. Eram dotados de outra matéria. De uma essência não-humana.
Acreditou-se que sua exemplar e inigualável inspiração derivava de fontes desconhecidas, sobrenaturais. Era o misterioso, o insondável que os elegia entre tantos outros, como os agraciados.
Será preciso esperar até o século 18 quando então o significado mais profundo do Gênio receberá um sólido embasamento teorico-ideologico do Romantismo alemão. Segundo Isaiah Berlin a concepção romântica do Gênio foi uma arma ideologica. Um poderoso instrumento do que ele denominou de contra-iluminismo, isto é, uma reação conservadora, reacionária mesmo, que se opôs abertamente à irradiação do racionalismo filosófico vindo da França iluminista.
Os românticos alemães utilizaram-se largamente do termo para contra-atacar os conceitos racionalistas que eles denunciavam como “frios” e “sufocantes”. O Gênio imaginado por eles não se atinha ao pré-estabelecido, às leis naturais fixas, nem à logica costumeira. Nenhuma lei cientifica o tolhia. Era pura intuição. Ele era o seu próprio legislador, fazendo suas próprias regras que o colocavam muito acima dos mortais (esboço do super-homem de Nietzsche).
O Gênio era uma força da natureza, uma emanação viva do misterioso, do irracional, do inexplicável, que como um raio refulgia numa grande idéia, original, gerando uma obra-prima inesquecível, marcando uma presença ímpar na história.
Herder, o filólogo e ensaísta, converteram-se num dos principais difusores do culto ao Gênio, exercendo sua ascendência sobre Goethe e o movimento Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang), que se tornou o marco do romantismo alemão dos séculos 18 e 19.
Inicialmente, particularmente com Kant, esse culto dirigiu-se aos artistas-gênio e às suas obras de artes para em seguida, com Hegel, generaliza-se passando a venerar personalidades de outros campos de sensibilidade e conhecimento tais como os cientistas, os inventores, e até os capitães de guerra como Napoleão.
O moderno público plebeu gerado pela Revolução Francesa sentiu-se atraído por estas exemplaridades, entre outras razões porque seus atributos, as virtudes do gênio, independem do sistema de castas, como ocorria entre os heróis antigos, todos descendentes da nobreza guerreira ou dos que foram martirizados pela fé.
Por um destes paradoxos tão comuns na história do imaginário, o Gênio cuja construção ideológica serviu inicialmente aos fins conservadores do Romantismo alemão terminou, com o tempo, por inspirar a massa democrata, porque não o viam identificado com nenhuma classe social específica Virou fonte de emulação popular em sua versão plebéia como é o caso da adoração das celebridades que ocupam hoje o lugar antes reservados às personalidades extraordinárias.
(*) F. Nietzsche por sua vez irá, em dois outros livros, explorar à exaustão e tirar as conseqüências estéticas e éticas extremas desta exposição do gênio feita por Schopenhauer: o primeiro no “Assim falou Zaratustra”, de 1883-5 e o segundo, no “Além do Bem e do mal”, de 1885.