Neste ano, a Universidade de São Paulo (USP) completa 82 anos. A instituição foi fundada no dia 25 de janeiro de 1934 e teve o auxílio de alguns professores estrangeiros em seu início. O professor Fernando Novaes contou como foi a seleção desses profissionais e a importância dos franceses para a faculdade.
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Estudos Avançados: Qual a contribuição dos historiadores franceses e dos cientistas da França para a evolução da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP?
Fernando Novais — Foi decisiva a participação da chamada missão francesa no Brasil na fundação da USP. A palavra missão, que era oficial, é muito significativa. A primeira missão francesa que chegou ao Brasil foi a artística, com Dom João VI. A segunda, na Primeira República, tinha como objetivo instruir os oficiais do exército. A terceira foi a dos docentes que vieram auxiliar na estruturação da USP e da Faculdade de Filosofia. A palavra missão, evidentemente, mostra que éramos vistos como uma terra de índios que deviam ser catequizados. Não há outra explicação.
Já que estamos tratando da influência dos franceses, particularmente na História, gostaria de fazer uma primeira observação: quando se afirma que essa influência foi muito importante, não deixa de haver um autoelogio. Mas, na verdade, os franceses foram muito importantes na renovação dos estudos de Ciências Sociais no Brasil.
A missão foi composta de pessoas de alta qualidade: Roger Bastide, Paul Arbousse-Bastide, Braudel, Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, etc. Costuma-se dizer que a seleção desses professores foi muito acertada, mas na década de 30 eles tinham vinte e poucos anos e eram recém-formados. Quando foram selecionados, não eram e nem se previa que seriam famosos.
Braudel, quando veio para São Paulo, ainda não tinha publicado sua tese, apenas uma ou outra resenha. Assim, parece que o Brasil deu sorte para esses franceses. Braudel, que jamais voltou ao Brasil, escreveu em um de seus últimos trabalhos ter sido sua passagem pelo País uma das épocas mais felizes de sua vida. Alguns brasileiros citam exaustivamente uma outra afirmação feita por ele — a de que "se tornou inteligente no Brasil, em São Paulo especialmente".
A questão básica colocada na pergunta diz respeito à contribuição da missão francesa. Ela foi muito significativa, porque a Faculdade de Filosofia e a USP foram decisivas para a modernização das Ciências Sociais no Brasil. Agora, por que nós fomos bons para eles? Provavelmente porque gostaram do Brasil.
Sempre me pergunto por que os estrangeiros, salvo raríssimas exceções, gostam do Brasil. Talvez a explicação seja a cordialidade brasileira, assinalada por Sérgio Buarque de Holanda. Outros franceses também fizeram os maiores elogios ao Brasil e aos brasileiros. Relembro os casos de Jacques Godechot e Albert Soboul.
Quanto à seleção desses professores, creio que houve um critério totalmente aleatório. Lévi-Strauss conta, no primeiro capitulo de Tristes trópicos, que era formado em filosofia, mas desejava ser antropólogo. Relembra que, num certo dia, recebeu um telefonema de um filósofo, seu professor, perguntando se continuava com a idéia de estudar índios. Diante da confirmação, esse professor disse: "Então, você precisa falar com Georges Dumas, pois ele está organizando uma missão que vai para uma Universidade em São Paulo, recém-criada; e nos arredores dessa cidade enxameiam índios". Esse foi o critério para a escolha de Lévi-Strauss.
Dessa missão, alguns já morreram e outros estão muito idosos, mas suas memórias podem ser lidas, além de seus livros. Deles, o mais interessante foi o filósofo Jean Maugüé. Ele não fez carreira, porque permaneceu por muito tempo no ensino secundário e, depois, foi para a diplomacia. Em seu livro de memórias, escreveu: "Sempre me perguntaram por que não fiz tese. Ora, descobri que escrever é deixar de viver. E sempre me recusei a deixar de viver". Quando teve um enfarte, disse: "Deixei de viver, agora posso escrever e vou escrever". Resultado: um livro de memórias absolutamente real, com vários capítulos sobre São Paulo.
EA: Qual a sua opinião sobre a contribuição de Braudel, não só aqui, orientando a cadeira de História, mas também para a historiografia mundial?
FN
— Braudel é considerado um dos maiores historiadores deste século. Juízo que é feito não somente pelos franceses, à medida em que a Escola dos Annales é vista como o principal núcleo da historiografia contemporânea. E Braudel é apontado como a figura exponencial dos Annales.
A USP foi estruturada em um momento decisivo dessa escola, criada em 1929. De acordo com Peter Burke — que escreveu sobre a história dos Annales — esta escola teve várias fases.
A primeira, que vai até a Segunda Guerra Mundial, é a fase da formação; a segunda, que se prolonga até o fim da década de 70, é o período da grande influência de Braudel; a terceira, é a que começa depois dos anos 70, marcada pela história das mentalidades.
Portanto, Braudel veio para a USP exatamente no momento constitutivo, na fase heróica dos Annelles, fase em que estavam abrindo caminho, marcando posição, assumindo o poder do ponto de vista institucional, e quando seus historiadores eram mais militantes.
Os alunos brasileiros de Braudel relatam que ele tinha uma postura muito firme na defesa de suas opiniões. Na segunda fase dos Annales, as opiniões de Braudel predominam na França. No Brasil, acompanhamos essa evolução. Há coisas que são contínuas na trajetória da escola e há outras que apenas despontam em cada momento.
Braudel é visto principalmente como um historiador de História Econômica e Social, figura exponencial do período dos Annales, dominado quase totalmente por temas nessa área.
A nova geração de historiadores — a que se dedica à história das mentalidades — tem uma certa animosidade contra Braudel, em parte porque ele era uma pessoa de convívio difícil, além de muito cáustico. Essas críticas são normais na sucessão de gerações — o chamado parricídio, que as gerações intelectuais sempre praticam.
EA: O senhor conheceu Braudel?
FN:
Estive com ele duas vezes. A primeira, em 1965, quando fui a Paris. À época, estava pesquisando em Portugal e levava uma carta de apresentação do professor Eduardo França. Quando disse a amigos que estava querendo falar com o professor Braudel, eles comentaram que seria mais fácil falar com o presidente De Gaulle. Mas, minha colega e amiga Maria Ieda Linhares, conversando com ele pelo telefone, conseguiu marcar a entrevista, possivelmente pelo fato de que eu levava a carta do professor França.
A conversa durou cerca de uma hora e Braudel quis conhecer a orientação das minhas pesquisas nos arquivos portugueses. Manifestou seu espanto, quando lhe disse que não pretendia estagiar em qualquer das escolas de Paris, nem obter bolsa e que apenas desejava ouvir sua opinião sobre a orientação de meu trabalho. Ele fez três observações absolutamente fundamentais a respeito da minha pesquisa. Estive com ele uma segunda vez, quando o visitei, em companhia do professor Barradas de Carvalho.
EA: O que o senhor poderia acrescentar sobre a atuação dos franceses na área de Ciências Sociais na USP?
FN:
Nas Ciências Sociais, além dos franceses, contribuíram os professores americanos e ingleses. Mas, na História, o papel fundamental foi dos franceses. Entre outros, Jean Gagé, Émile Leonard, Émile Coornaert e, naturalmente, Braudel. Todos eles de primeira qualidade. O Leonard é o principal historiador do protestantismo na França e, quando veio, inaugurou uma das duas cátedras de História (havia a cátedra de História da Civilização e a de História da Civilização Brasileira).
Por várias razões, nosso curso de História, aqui na USP, se diferenciou dos demais cursos das Ciências Sociais. Na História — diferentemente da Geografia, da Sociologia e da Antropologia — nunca tivemos professores estrangeiros que permanecessem muitos anos entre nós. Roger Bastide ficou dezesseis anos na Sociologia. Maugüé, da seção de Filosofia, permaneceu por quase dez anos em nossa Faculdade. Na área de Literatura, ocorreu o mesmo, e posso exemplificar com a longa permanência em São Paulo de Fidelino de Figueiredo. Outro caso foi a Geografia, com a longa docência de Pierre Monbeig. Esse fato tem que ser considerado, ao se analisar a influência dos professores franceses nas cadeiras de História.
Há outra peculiaridade mais geral, porque a História é diferente das demais Ciências Sociais; pode-se até questionar se a História é mesmo uma Ciência. Seu objeto é difícil de ser delimitado e também não tem um método facilmente definido. Além disso, ao se apreciar a trajetória da área de História da FFCL, deve-se levar em conta que, no Brasil, já se fazia História antes da criação da USP. Quando se diz que o surgimento da USP assinala a passagem do amadorismo para o profissionalismo nas ciências, isso é verdadeiro para Sociologia, Antropologia, etc. No entanto, no caso da História, essa transformação não é assim tão nítida. Havia mais longa tradição e alguns historiadores de maior projeção, como Capistrano de Abreu.
Há outro fator importante e peculiar à Faculdade de Filosofia: os fundadores da Universidade não ousaram convidar um estrangeiro para ensinar História do Brasil quando se estruturou a área de História. Foi criada a cátedra de História da Civilização Brasileira, ocupada por Taunay e depois por Alfredo Ellis. Tanto um quanto outro eram historiadores com méritos, principalmente Taunay. Mas eram fundamentalmente tradicionais no sentido de ficarem à margem da renovação da historiografia mundial, especialmente a francesa. Ambos marcaram a primeira fase dos trabalhos dessa cátedra, seguindo uma orientação tradicional.
Em razão disso, a modernização da historiografia se deu, não nos temas de História do Brasil, mas, através da cátedra de História Geral da Civilização. Ou seja, pela cadeira ocupada pelos professores estrangeiros. Sorte teve a Geografia, com a presença de Monbeig, porque este, naturalmente, tinha como campo de pesquisa o território nacional! O tema de Braudei era o Mediterrâneo e sobre esse tema suas pesquisas deram uma obra fantástica. Maugüé, em um de seus livros, discute esse paradoxo na atividade dos professores estrangeiros em São Paulo.
Conta ele que não entendia porque Braudel, aqui no Brasil, fazia sua tese sobre o Mediterrâneo no século XVI. E acrescentava que só faria uma tese, neste País, sobre um tema filosófico ligado à sua experiência em São Paulo. Como não encontrou esse tema, decidiu não elaborá-la. Excepcionalmente, Leonard, especialista em História do Protestantismo, escreveu um artigo muito interessante sobre o tema no Brasil.
Assim, a área de História do Brasil na Faculdade, em seu período de formação, ficou marcada pela orientação de historiadores tradicionais até a entrada de Sérgio Buarque de Holanda, em 1956. Note-se que no regime das cátedras, que existiu até a reforma universitária de 1968, a orientação dos catedráticos não podia ser questionada. Seus assistentes eram forçados a seguir rigorosamente suas determinações.
O professor Eduardo França disse-me que desejou fazer sua tese sobre História do Brasil, mas não pode, porque era assistente da cadeira de História Moderna e Contemporânea. Assim, sua primeira tese foi sobre o poder real e as origens do absolutismo em Portugal. Isto porque, de certa forma, queria estar próximo da História do Brasil. Mas não podia explicitar esse fato, pois os catedráticos eram Taunay e Alfredo Ellis. O segundo trabalho do professor França foi também sobre Portugal, focalizando a época da Restauração. Eu mesmo fiz a minha tese sobre o Brasil Colonial, encontrando um tema que articulasse Portugal e Brasil, dado que não se podia escrever um trabalho sobre o Brasil numa cadeira de História Moderna e Contemporânea.
Assim, o peculiar na História, na modernização das Ciências Sociais no Brasil através da USP, será talvez esta incidência indireta das novas correntes de pensamento.