Chegar à final tinha sido inimaginável. Já não importava tanto o desfecho da história. Mas ele foi além. No fim da tarde desta quarta-feira, João*, de 17 anos, interno da Fundação Casa, foi anunciado como um dos cinco premiados da edição de 2014 da Olimpíada Nacional de Língua Portuguesa na categoria Poema.
“O conhecimento é a única coisa que ninguém pode tirar de você. Quando você adquire, percebe que é como ouro”, disse em entrevista ao Terra.
Em breve, talvez no início do próximo ano, ele será solto novamente. E terá que mudar de vez a sua relação com o lado de fora da instituição.
Para o garoto, a rua sempre lhe pareceu mais atrativa que a escola. Aos seis anos, enganava os pais e, em vez de estudar, caminhava pelas vielas de Sapopemba, na zona leste de São Paulo, catando papelão para vender. Nos dias bons, conseguia cerca de R$ 20 – que eram usados para cortar o cabelo, comprar comida ou fazer reparos em sua bicicleta. Assim se passaram anos. Um dia, porém, tudo mudou. Em uma dessas andanças, um amigo pediu para que ele o ajudasse com um serviço. No meio do caminho, descobriu que iria entregar uma encomenda de drogas. Fez o trabalho, recebeu o dinheiro e foi embora. Até que a viatura chegou. Foi assim que conheceu a Fundação Casa. À época, tinha 13 anos.
No início de dezembro, quando ele havia sido anunciado como um dos finalistas do concurso, a reportagem fez uma visita à unidade da Vila Maria onde ele vive. Quando chegamos, por volta das 14h, estava com os colegas dentro de uma silenciosa sala de aula, assistindo ao filme 12 Anos de Escravidão. O diretor da instituição, Christian Lopes de Oliveira, foi o responsável por chamá-lo. “Vou aproveitar para dar uma notícia boa, ele vai ficar feliz”, afirmou, misterioso.
João chegou discreto, devagar e com o olhar baixo. A novidade que o diretor tinha para contar era que ele havia se classificado no Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), resultado que o fará saltar da 6ª série do ensino fundamental direto para o 1° ano do ensino médio. “Não falei que eu ia passar? É só se esforçar um pouco”, gabou-se.
A entrevista começou em outra sala vazia, onde o jovem mostrou que sua aparente timidez escondia um discurso bem elaborado. Sem hesitar em nenhuma resposta, explicou todo o processo da olimpíada, falou sobre a relação com sua família – incluindo o drama com o pai alcoólatra e o amor aos filhos gêmeos que nasceram no ano passado – e contou em detalhes como aconteceram suas detenções.
A olimpíada
Naquela unidade da Fundação Casa, vinculada a uma escola estadual, os alunos assistem a aulas diárias em salas da própria instituição. Em uma delas, a professora Maria da Penha Silva, que leciona no local há 12 anos, sugeriu que todos escrevessem textos com o tema “O Lugar Onde Vivo” para tentarem participar do concurso. Em 20 minutos, João fez o dele, intitulado Vida em Transição (confira a íntegra abaixo). A facilidade vem do costume de ler e compor canções para passar o tempo.
“Gosto muito de música, ouço vários estilos diferentes. Gosto de Racionais MCs, Facção Central. Escrevo letras de rap e funk há alguns anos. E gosto de ler. Aqui na biblioteca da fundação fazemos troca de livros às sextas-feiras. Esses dias li um de poesias do Fernando Pessoa”, contou, orgulhoso.
Elogiado pelos professores e companheiros, seu poema foi o escolhido para representar a turma na competição. E ele passou na seletiva municipal. Passou na seletiva estadual. Passou na seletiva nacional. Em outubro, recebeu uma autorização e viajou ao lado da professora e de um agente a Belo Horizonte (MG) para participar da semifinal.
Desconfiado, achou que poderia sofrer preconceito por conta de sua história. Isso não aconteceu. Com ele. “Não era todo mundo que sabia de onde eu vinha, mas quem sabia não me discriminou. Muitas pessoas até me abraçaram, me elogiaram. Fiquei emocionado. Mas é complicado. Tinha um ‘indiozinho’ participando também e eu vi pessoas rindo e fazendo piadas sobre ele. Então não aconteceu comigo, mas aconteceu com outro”, disse.
Neste ano, 53.706 textos de estudantes de escolas públicas do Brasil competiram nas quatro categorias da olimpíada (Poema, Memória Literária, Artigo de Opinião e Crônica). No momento da divulgação dos nomes dos 38 “poetas” finalistas, João, que é evangélico, reservou alguns minutos para agradecer a Deus. Em seguida, começou a pensar em tudo que poderia mudar em sua vida.
“Viajei de avião pela primeira vez, fiz algumas oficinas muito gostosas, fui anunciado como finalista. Tudo foi novo para mim. Pessoas que eu nunca tinha visto estavam me aplaudindo e falando que eu merecia aquela vitória. Lá eu vi que posso mais. Isso despertou uma vontade de me aprofundar nos estudos e de fazer faculdade. Mudou até minha maneira de lidar com minha família. Sou outra pessoa desde que voltei. E acho que fui o primeiro de muitos meninos daqui a conseguir isso”, afirmou.
Não é só ele que pensa dessa maneira. Ao comentar a conquista do aluno, a professora Maria da Penha enche o peito de orgulho (e os olhos de lágrimas).
“Para trabalhar aqui, você tem que abraçar a causa. Precisa ter paciência, dedicação. Além da defasagem de aprendizado, muitos deles não gostam da escola. Dizem: ‘não adianta estudar, ninguém vai nos ver com bons olhos quando sairmos daqui’. Temos que estimular o tempo todo”, disse. “Nosso desempenho na olimpíada fez deste o meu melhor ano. E olha que tive um problema, acabei de voltar de licença-médica. Mas foi a melhor resposta que já tive. Todos os alunos, de todas as unidades, ficaram mais motivados. Agora me perguntam quando vai ser o próximo concurso, pedem para eu ler poemas que escreveram... É um sonho, é isso que sempre busquei”, completou.
A família
Antes de ir para a fundação, João morava em Sapopemba com a mãe, auxiliar de limpeza, e dois irmãos mais velhos. Com todos, diz ter “uma relação ótima”, incluindo “brincadeiras, conselhos e puxões de orelha”. O diretor Christian confirma: eles, que não possuem ficha criminal, costumam visitá-lo todos os finais de semana.
Já o pai, que luta contra o alcoolismo, vive em outra casa. Por conta do vício, o garoto evitou ter contato com ele por alguns anos. Agora, tenta se aproximar. “Ele nunca nos maltratou, mas fazia a família sofrer. Íamos buscá-lo no bar todo machucado, as pessoas abusavam dele, não ajudavam. Penso diferente hoje. Quero estar do lado dele o mais rápido possível. Até porque ele está se recuperando. Já parou de beber, mas ficaram as doenças, como diabetes e cirrose”, contou.
No ano passado, dez dias depois de ter sido internado, seus filhos gêmeos nasceram. De lá para cá, João só os encontrou duas vezes. De acordo com o diretor, a mãe de sua namorada, menor de idade, não a deixa visitá-lo sempre.
“Depois que você se torna pai, passa a viver pelos filhos. Eles são tudo para mim. Cada vez que pego no colo tenho uma sensação. Não consigo não chorar. Vejo aquelas ‘pessoinhas’ pequenas que coloquei no mundo... olha a responsabilidade enorme que tenho nos braços! Mudou tudo. Por causa da família que constituí, nunca mais vou ser o mesmo. Reconstruí todos os planos que eu tinha. Reformulei todos meus objetivos”, afirmou.
Seus sonhos agora? Formar-se em uma universidade, ajudar a namorada a se formar e guardar dinheiro para um dia conseguir dar a mesma educação aos gêmeos.
As internações
“Cada crime, uma sentença. Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química e pronto: eis um novo detento”
Diário de um Detento, Racionais MCs
A primeira passagem de João pela internação foi a mais complicada. Com apenas 13 anos, ele ficou sete meses detido. “As crianças com essa idade jogam videogame, vão para a escolinha de futebol. Eu estava preso. Na hora que a polícia me pegou, eu só pensava na minha família. Aquele foi o primeiro dia que eu fiz uma coisa errada! Quando fugia da escola para trabalhar, minha mãe ficava brava, mas orgulhosa ao mesmo tempo. Então foi apavorante. Quando cheguei e vi os meninos todos carecas, em fila, nem sabia o que pensar”, relembrou.
Quando deixou a fundação, o rapaz estava decidido: nunca mais se envolveria com o tráfico. Voltou a estudar e a trabalhar em uma oficina de funilaria. Certo dia, em casa, sua mãe pediu para que fosse ao mercado. Fazia um mês que estava em liberdade. Ao sair, uma viatura à paisana em sua rua, onde funciona um ponto de venda de drogas, o abordou. Questionado se já tinha passagem, respondeu que sim. De acordo com ele, um dos policiais, então, apontou para uma bolsa que estava no chão (deixada por um dos traficantes que havia fugido) e disse: “então isso é seu”.
Com a segunda internação (de pouco mais de 1 ano) veio a revolta. Tomado por raiva e ressentimento, João começou, agora sim, a atuar no crime. Mas sua vida sofreu outra rápida reviravolta: assim que saiu, engravidou a namorada. Mais uma vez, decidiu deixar o tráfico. Só que cometeu um deslize: teve pena de um antigo parceiro que estava com problemas e o ajudou a esconder drogas em sua casa. A polícia encontrou. Foi detido pela terceira vez.
“Agora estou longe da minha mulher, da minha mãe, dos meus filhos. Não tenho liberdade para nada. A parte boa é que me disciplinei. Aprendi com as normas daqui a ter responsabilidade. Reflito muito e converso bastante com os funcionários. É difícil para as pessoas acreditarem que eu vou mudar, elas não costumam acreditar nem nas histórias das minhas primeiras internações, mas eu sei que o errado nunca dá certo. Quando duvidam de mim, tenho ainda mais vontade de mostrar que sou capaz”.
Vida em Transição
Viver na Fundação não é bom
Bom é ser livre em toda situação
Mas tenho minha opinião
Sobre esse período de transição
Que muitos dizem ser prisão.
Nesse lugar, maldade...
Que ao mesmo tempo é saudade
Por estar privado de liberdade
Mas tem um lado positivo
Nessa realidade
Estou me reabilitando para a sociedade.
Acordo e vejo grades
Meu peito dói de verdade
Só quem passou
Por isso sabe
De todas as realidades
E crueldades...
A maior necessidade
É a Liberdade!
Aqui lições de vida transmitem
Muitas coisas boas
Reconhecimento como pessoa
Que errar é humano
Mas aprender é a melhor coisa.
Atrás desses momentos tem algo impressionante
Hoje me tornei um estudante
Descobri que sou inteligente
Produzi este poema e me sinto importante.
*João é um nome fictício usado para preservar a identidade do jovem