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Jovem indígena de 22 anos deixa Amazonas para cursar história em São Paulo

Nalberth Barreto saiu de município onde 90% da população se declara indígena, mas encontrou na universidade ainda mais diversidade de etnias

14 jun 2023 - 05h00
Nalberth Barreto diz que está conhecendo mais sobre a cultura indígena na universidade
Nalberth Barreto diz que está conhecendo mais sobre a cultura indígena na universidade
Foto: Arquivo Pessoal

"Na moradia, eu estou aprendendo mais sobre cultura indígena do que eu aprendi em São Gabriel". A frase é do estudante Nalberth Barreto, 22, aprovado no Vestibular Indígena da Unicamp em agosto de 2022, para cursar História. Com a aprovação, Nalberth deixou o município de São Gabriel da Cachoeira, onde vivia com a família, no interior do Amazonas, para desbravar o estado de São Paulo. 

Em São Gabriel, como ele se refere à cidade de pouco mais de 47 mil habitantes, cerca de 90% se declaram indígenas, o que rendeu ao município o título de "capital estadual dos povos indígenas" no ano passado. Apesar de ter crescido em um local que possui três idiomas nativos oficiais, além do português, Nalberth garante que a universidade é capaz de extrapolar toda essa mistura cultural com a qual já estava acostumado. 

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"Aqui é uma pluralidade tão grande. São muitas pessoas, de muitas etnias, de variadas regiões do Brasil, que dividem a moradia. Todo final de semana o pessoal se reúne para jogar bola e para conversar. Então, ficam ali mais de 30, 40 pessoas indígenas, de muitas etnias, compartilhando cultura", conta Nalberth que é da etnia Baré. 

Ele vive na moradia estudantil da Unicamp, que comporta mais de 800 estudantes divididos em blocos e casas. No caso de Nalberth, ele escolheu morar com mais três estudantes indígenas, devido à familiaridade de costumes, principalmente no sentido da coletividade.

Além dos hábitos semelhantes, os estudantes aprovados pelo Vestibular Indígena compartilham também o aperto financeiro. Eles até recebem auxílio para permanecer na universidade, mas não é suficiente.

"Aqui [Campinas] é distrito de Barão, né? Muitas vezes não dá. Muitas vezes, os pais desses indígenas só conseguem mandar R$ 100 por mês", explica Nalberth. "Vir para cá tem que ter muita coragem, passar por uns perrengues de vez em quando". 

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Ele mesmo assume que, às vezes, passa por uns problemas financeiros, mas confia que logo irá se ajeitar.

Nalberth faz um podcast na Unicamp chamado 'Ecoa Maloca', voltado para diálogos indígenas sobre diversidade, ciência e sustentabilidade
Foto: Arquivo Pessoal

Dúvida sobre qual faculdade cursar

Antes de ser aprovado na Unicamp, Nalberth chegou a cursar Enfermagem em uma faculdade particular do Amazonas. Ele havia escolhido por esse curso justamente para trabalhar com a causa indígena. 

"Meu padrasto foi coordenador dos Yanomami, então eu viajei muito pelas comunidades indígenas, principalmente as Yanomami. Conheci muito médico, muito dentista, enfermeiro. Então, me inspirei bastante nele, sabe?", conta. 

Depois, vendo o tanto de sangue que a profissão envolvia, percebeu que não tinha vocação para a área. Nalberth saiu do curso, voltou a estudar para o vestibular e redescobriu a história. A paixão pela disciplina é antiga.

"Eu sempre gostei de história, desde que eu era curumim. Desde os meus 11, 12 anos", diz Nalberth, ao relembar os momentos que passava na lan house, lendo artigos na internet. 

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A lista de leituras inclui clássicos e livros sobre o estado onde nasceu e cresceu. 

"Eu acho que eu comecei a desenvolver esse senso crítico para a sociedade, então eu li um pouco de Darcy Ribeiro, li um pouco de outros livros que voltavam para o Amazonas. Eu comecei a perceber a minha própria história, da minha sociedade, da minha cultura, o Amazonas", acrescenta. 

O reencontro com a história lhe deu um novo significado para a graduação, que ainda está ligada aos povos indígenas. Como sua cidade natal é rica em óleo e minério, ele imagina que possa vir a ser alvo de disputas.

"Eu comecei a me imaginar defendendo essas terras", diz. "Você só vai poder defender essa terra um dia, se você tiver um título, se você tiver voz para falar", acredita.

O que é Vestibular Indígena

Em 2022, ocorreu a primeira edição do Vestibular Indígena unificado entre a Unicamp e a UFSCar
Foto: Antoninho Perri/SEC Unicamp

O Vestibular Indígena foi criado pela Unicamp em 2018, e a primeira turma deve se formar no final deste ano. Segundo a universidade, poucos estudantes desistiram da graduação e, atualmente, 438 alunos indígenas estão matriculados nessa modalidade. 

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De acordo com o diretor da Comissão de Vestibular da Unicamp (Comvest), José Alves de Freitas Neto, antes da criação do Vestibular Indígena, de quatro a sete estudantes indígenas ingressavam na universidade por semestre. No último vestibular, foram 130 indígenas aprovados. 

Apesar de serem avaliadas as mesmas disciplinas do vestibular comum, o conteúdo cobrado no Vestibular Indígena busca estar mais relacionado às vivências dessas comunidades, segundo explica Freitas Neto.

"Temos conhecimentos mais básicos. Uma prova que prioriza mais o raciocínio lógico, por exemplo, do que fórmulas ou conhecimentos que são tradicionalmente apresentados nessas disciplinas", afirma. 

Segundo o diretor, o cuidado é de respeitar as experiências dos povos e das culturas indígenas para, assim, valorizar o percurso estudantil que eles fizeram. Até mesmo por isso, nessa modalidade não há prova de inglês ou literatura. Mas, apesar de os estudantes indígenas teremm forte tradição oral, eles são cobrados a escreverem uma redação em português. 

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Outras universidades brasileiras também oferecem o Vestibular Indígena. No último processo seletivo, inclusive, a prova da Unicamp foi realizada em conjunto com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Fonte: Redação Terra
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