Com as restrições de fronteira impostas pela pandemia, é de se imaginar que a ideia de ingressar em um curso no exterior seja um projeto a ser adiado para o futuro, certo? Não exatamente. Em 2020 tem havido um crescimento de brasileiros interessados pelas formações em instituições de ensino fora do País.
"Observei um aumento de demanda enorme este ano, curiosamente", afirma Andrea Tissenbaum, consultora especialista em educação internacional, que orienta estudantes interessados em estudar no exterior. "Para o ano que vem, em termos de demanda de applications, minha agenda está lotada", diz.
Felipe Fonseca, fundador da consultoria educacional Daqui pra Fora, também nota a tendência. "Tivemos poucos casos de desistências, motivados pela questão do dólar, que agora está mais alto do que na época em que os candidatos escolheram as universidades. O nível de interesse em estudar fora tem crescido muito. Há vários outros motivos de interesse, que são maiores que os desafios."
São estudantes que não estão dispostos a esperar a normalização das atividades e se dispõem a viajar, mesmo para estudar online lá fora. "Uma aluna comentou que o modo remoto já seria uma forma de assistir às aulas e manter o contato com as pessoas. Os jovens sabem que não vai ser o ideal, mas pelo menos vai ser algo", conta Fonseca.
Entre as razões que fazem com que muitos estudantes aceitem iniciar os cursos no formato remoto em vez de adiar a mudança para o exterior está a frustração com a situação do ensino no Brasil. O problema é percebido de maneira mais incisiva por interessados em cursos superiores e de pós-graduação, que se preocupam com a diminuição dos incentivos e insumos à atividade de pesquisa no País.
Provas
Neste ano, com a pandemia, as instituições de ensino internacionais também modificaram seus processos seletivos, o que pode facilitar um pouco o processo para quem deseja estudar fora. Exames presenciais requisitados como o SAT e ACT, equivalentes ao Enem brasileiro, foram cancelados por questões de segurança sanitária.
Com isso, pelo menos 1,4 mil escolas dos Estados Unidos deixaram de exigir tais avaliações e algumas passaram a avaliar outros elementos. Em Harvard, por exemplo, serão considerados materiais que demonstrem importantes realizações dos alunos no ensino médio, processo já adotado em outras instituições estrangeiras e que pode indicar, no futuro, mudanças no processo seletivo.
"O Canadá, que não exige o ACT, e mesmo vários países da Europa são muito mais democráticos na forma como olham o aluno. As universidades têm um ranqueamento das escolas dos países. Toda universidade faz esse acompanhamento, sabe quais as melhores escolas do Brasil, quando um aluno se destaca. Isso dá muito mais oportunidade para as pessoas, pois a construção de um background vai muito além de um exame", explica a consultora Andrea.
Ir estudar fora não significa abandonar o País. "Historicamente, os brasileiros voltam para o Brasil. Acompanho isso há anos, desde que era aluna de um curso de doutorado fora do País. O restante dos latino-americanos ficava e brasileiros retornavam. Faz parte da cultura brasileira querer estar aqui, querer auxiliar", diz Andrea.
Com as incertezas atuais, os estudantes que partem para estudar fora possivelmente irão encontrar um Brasil bem diferente ao retornar. Mas, como nota Fonseca, da Daqui pra Fora, serão os futuros profissionais que ajudarão a fazer diferença. "Esses jovens voltam com uma cabeça globalizada, mais aberta, pois aprenderam a se virar longe das facilidades que têm. Estudar fora é muito mais do que educação de qualidade. O desenvolvimento pessoal sobrepõe o conhecimento acadêmico que o aluno tem em sala."
Colégios internacionais
Parte dos alunos que faz curso superior fora estudou em escolas internacionais. Essas instituições seguem um currículo estrangeiro, geralmente americano ou britânico, em que todas as disciplinas são lecionadas em inglês. O calendário é idêntico ao do país regente - o ano letivo começa em agosto e os alunos se formam com diploma estrangeiro.
Na pandemia, as instituições foram obrigadas a seguir uma trilha paradoxal que teve de incluir o princípio que mais contradiz suas propostas pedagógicas: o isolamento. Como transpor a metodologia que, tipicamente em escolas internacionais, requer períodos diários de sete horas de convívio?
Na Red House International School, a aplicação de conteúdos foi otimizada de forma a tornar mais produtivo os momentos em que os alunos estão online. Das sete horas habituais do currículo presencial, o tempo de aula remota foi diminuído para o máximo de quatro horas para os mais velhos, com intervalos, e de três, para os menores. Com a utilização da plataforma Zoom, os professores trabalharam unidades de investigação nos eixos linguagem, matemática e estudos sociais.
"Não precisamos mexer no currículo e, por enquanto, não tivemos de jogar nada para 2021", afirma Denise Lam, diretora acadêmica da Red House International School. Os resultados da sondagem que a escola fez para verificar como estava o desempenho da alfabetização mostrou que a estratégia tem dado certo. "Muito se temia de que seriam os mais prejudicados. Mas descobrimos que 70% das minhas crianças do primeiro ano do fundamental estavam alfabéticas. Trata-se de um número bom para o momento do ano e essa faixa etária."
Com metodologias que se apoiam no aprendizado de um segundo idioma, o principal desafio tem sido manter os alunos imersos no uso de uma outra língua de forma remota, sem os recursos de seus ambientes.
"Quando tudo começou, a discussão era de como manter a língua ativa. Mas a quarentena foi ampliada e a gente viu que as crianças se desenvolveram no virtual a partir dos mesmos fatores que fazem com que se desenvolvam no presencial: a interação com os colegas e o planejamento de aproximação de linguagem proposto pela escola", diz Marcello Marcelino, professor e pesquisador em aquisição da linguagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Isso significa fazer com que a criança se sinta confortável no idioma, para depois apreender conteúdos de disciplinas específicas. "É primordial que a criança se sinta bem. Não pode achar que não está conseguindo aprender, que é difícil. Se ela está confortável, leva esse conforto para outros contextos, como a aula de Ciências ou Matemática. Isso é riquíssimo para que a criança adquira a segunda língua", diz.
No Brasil, busca por formação multidisciplinar
Escolas, universidades e empresas foram forçadas à digitalização na pandemia. Essa ruptura, no entanto, pode trazer mudanças ao mercado e ao ensino superior no Brasil, com uma busca por formação multidisciplinar.
"A tecnologia não resolve, mas permite implementar o que nem estava no nosso radar. Todo mundo estava acomodado", diz Vera Cabral, diretora de Educação da Microsoft Brasil. Para Priscila Gonsales, diretora executiva do Instituto Educadigital, a formação de professores não dialoga com uma sociedade baseada em dados. "A pandemia não só mostrou que a gente precisa mudar, mas também enfatizou a necessidade de colaboração entre empresas, instituições de ensino e governos."
Gustavo Donato, reitor do Centro Universitário FEI, cita como exemplo alterações feitas na instituição em 2016, após um processo com a participação de CEOs. E ressalta: "O docente não é mais o único detentor do conhecimento. Ele tem de deixar de ser um fornecedor, para ser um tutor, que partilha daquele projeto de vida, de carreira."
Segundo Lucas Mendes, cofundador da Revelo, startup de Recursos Humanos, ainda não há no Brasil gente suficiente para a revolução digital. "O profissional que mais está faltando no mercado é o nexialista, aquele que atua de forma multidisciplinar." Segundo Ana Carnaúba, diretora da D-Influencers da Deloitte, para assegurar o desenvolvimento do funcionário sem matar sua curiosidade, a empresa criou a própria universidade. "Recebemos profissionais com gaps, e na Deloitte University buscamos um equilíbrio entre hard e soft skills."
Depoimento: Luca Marini, aluno de Finanças e Assuntos Globais na Universidade de Notre Dame (EUA)
"Estudo nos Estados Unidos desde o ano passado. No Brasil, em março, quando fomos avisados de que as aulas seguiriam de modo remoto. Fiquei frustrado, mas vi que era a realidade pelo mundo. Foi assim até agosto, quando houve o retorno presencial, no dia 10. Para conseguir voltar ao país, tive de ficar 15 dias no México, fazer quarentena lá. Nas aulas presenciais, temos de acessar um aplicativo e informar onde estamos e que cadeira usamos. Assim, se alguém de uma cadeira perto de mim for contaminado, devo ser testado. Caso dê positivo, fico de quarentena e faço outro teste para verificar se não foi um erro. Se der negativo, sou liberado para circular após 24 horas. Os refeitórios estão fechados. Foram montadas barracas nos gramados para a gente comer ao ar livre. As refeições são servidas em recipientes, com talheres descartáveis. No primeiro fim de semana após o início das aulas houve algumas festas fora do câmpus, porque estava todo mundo querendo se ver. Esses eventos causaram contágio, comprovado pelo rastreio feito na universidade. O resultado foi que as aulas tiveram de voltar a ser remotas e os contatos entre alunos passaram a ser restritos. Por exemplo, a gente só pode conviver com os colegas do mesmo quarto. Quem mora em um dormitório não pode entrar em outro. Mas a expectativa é de um retorno em breve, com a diminuição dos casos. Quero muito que isso aconteça, porque o ensino é muito bom e perde qualidade quando vai para o Zoom. Isso além da interação, não é? Quanto ao futuro, ainda não sei o que desejo, se ficar aqui ou voltar ao Brasil. Quero trabalhar em banco e o mercado americano vale a pena. A longo prazo gostaria de voltar, mas ficaria nos Estados Unidos pela minha carreira, não pelo país em si."