Amarelinha, três marias, telefone sem fio, passa-anel, ovo podre (ou ovo-choco). Se você tiver mais de 20 anos, provavelmente já foi apresentado a uma dessas brincadeiras ou até brincou de todas exaustivamente, em um mundo onde a tecnologia não era tão inerente ao dia a dia. Elas estão cada vez menos conhecidas entre a geração da tecnologia, que adotou o computador e os games nos tablets como novos passatempos favoritos. Por ser parte da cultura brasileira, escolas tentam resgatar a tradição das brincadeiras antigas.
Entre as antigas, as brincadeiras de correr no pátio é que sobrevivem firmes e vitoriosas. A professora do ensino fundamental I e coordenadora adjunta do Colégio Catarinense, Magali Schmitz Knoll, conta que os alunos menores ainda pedem para brincar de pega-pega e esconde-esconde, apesar dos tablets e computadores presentes em sua rotina “A tendência são brincadeiras antigas mais de corpo, que tragam empolgação, que eles possam correr. Também percebemos que os pequenos do infantil ainda adoram brincar de casinha, por exemplo, onde eles assumem os papéis da família.” Entre as antigas que caíram em desgosto pelos pequenos, a professora cita os jogos de tabuleiro. “Eles acabaram sendo substituídos pelos jogos eletrônicos, que chegaram com um atrativo visual maior”, justifica.
Mas nem por isso as escolas deixam de ensinar os jogos tradicionais. A pedagoga e especialista em educação, Denise Tinoco, elenca como benefícios das brincadeiras antigas o desenvolvimento da linguagem, a tolerância, capacidade de se colocar no lugar do outro e, principalmente, o trabalho em conjunto e o desenvolvimento social. “Em muitos brinquedos cantados você precisa do outro para brincar, como aquelas brincadeiras de colocar um colega no meio da rodinha (a brincadeira viuvinha, onde a criança que está no meio escolhe e abraça outro colega pode ser um exemplo) e a troca de papéis é importante para o desenvolvimento.”
O resgate das três marias
No Colégio Positivo - Jardim Ambiental, de Curitiba, que atende do maternal ao ensino médio, o projeto de resgate das brincadeiras antigas busca manter vivo o aspecto cultural trazido por elas. “Essas brincadeiras fazem parte de nossa cultura, é importante que os alunos estejam revivendo as tradições. A cultura é transmitida de geração em geração e deve continuar. Além disso, a maioria dessas brincadeiras estimula a questão social, a interação nelas é mais viva, corporal, o que é muito positivo para as crianças aprenderem a controlar seus impulsos e ímpetos, por exemplo”, explica a professora e gestora do primeiro e segundo ano do fundamental, Domus Aurea Batista da Silva.
No projeto, os alunos pesquisaram em casa quais eram as brincadeiras preferidas dos pais ou avós. Entre as mais queridas estavam jogar peão, pular corda, amarelinha, cinco marias, lenço atrás e queimada. Elas foram ensinadas aos alunos da nova geração. “Muitas crianças até já conheciam as brincadeiras, pois existem famílias que se preocupam em preservá-las, mas mesmo quem não conhecia, adorou. Elas demonstraram entusiasmo de poder entender como os avós brincavam”, conta Domus.
Além do projeto onde os alunos trazem os pais para brincar na escola do jeito de sua época, o colégio tenta resgatar as brincadeiras diariamente no recreio. As mais lembradas e já incorporadas pelos alunos são as de corda, jogar bola, fogo foguinho e amarelinha.
A era da tecnologia nas lojas de brinquedos
Mas uma coisa é certa: não há como ignorar a tecnologia nos brinquedos. Apesar das críticas de que esse tipo de brincadeira privilegia a individualidade e a falta de interação, não são só malefícios que chegam com computadores e tablets. Inclusive, muitas brincadeiras antigas acabam tendo suas versões modernas nos brinquedos tecnológicos, geralmente em jogos. O jogo The Sims, por exemplo, pode muito bem ser uma transformação da brincadeira de casinha para uma versão computadorizada. Os jogos de tabuleiro também estão disponíveis em abundância na internet, inclusive para serem jogados em dupla.
No Colégio Catarinense, o uso do tablet como ferramenta pedagógica já é frequente. Magali explica que os jogos são mais vivos e vibrantes, e atraem mais visualmente as crianças. “Ele vem pra completar o ensino com os jogos pedagógicos. O cuidado da escola é fazer o filtro para que sejam jogos que realmente ensinem junto com a atração visual, como os de perspectiva ou estimativa. O segredo é dosar os dois tipos. A criança muda seus interesses, mas continua gostando das brincadeiras antigas também”, explica.
Existe um “brincar” politicamente incorreto?
Uma criança faz o papel da porta, uma do diabo e outra de Deus. As restantes serão as fitinhas coloridas, cada uma de uma cor. O diabo bate na porta e diz: “É o diabo. Quero uma fita da cor amarela”. A criança que é a fita amarela desembesta a correr e tem de fugir do diabo. Se chega até onde está Deus, geralmente do outro lado do local, está salva. Se o diabo a pega, ela leva beliscões. Essa é a brincadeira Diabinho da Perna Torta, cheia de significados percebidos só depois que o tempo passa e a maturidade chega. Muita gente brincou de Diabinho, na completa inocência e não quer dizer que teve uma má criação.
A pedagoga Denise acredita que simplesmente modificar as brincadeiras não contribui para evitar uma má formação da criança. “O professor e a família são mediadores culturais dos alunos. Quando você isola um acontecimento ou não o mostra à criança, sem indicar outros caminhos, deixa de exercer o seu papel de mediador”, alerta. Ela lembra que em muitos jogos e brincadeiras atuais e muitas vezes na televisão, a violência é muito mais presente do que nas brincadeiras antigas. Não adianta esconder da criança a existência delas, mas sim orientá-las. “Na brincadeira do Diabinho, por exemplo, existe a questão dos dogmas. Antigamente as brincadeiras cantadas eram utilizadas para ensinar ou até assustar. De certa forma, os games atuais também fazem isso, têm personagens que precisam fugir de algo, que assustam, e os pais os compram mesmo assim. A questão é como mediar tudo isso. A criança sabe que está brincando. Ninguém vai ficar violento porque cantou uma cantiga ou brincou de queimada. As pessoas ficam violentas se enxergarem e sentirem a violência dentro da escola”, esclarece.
No Colégio Positivo, a professora Domus explica que caso brincadeiras como essa surjam, por sugestão dos alunos, a solução é o professor estar atento para mediar caso a brincadeira cause sentimentos desconfortáveis. “Temos diversidade cultural e religiosa na escola, com respeito. Se uma criança trouxer uma ideia como essa, o professor vai mediar, adequando a brincadeira para que não se usem termos ou ações que causem medo ou espanto, mas sem podar a criatividade dos alunos”, explica. Para ela, não há problema em as crianças reformularem as brincadeiras usando a imaginação, por mais tradicional que ela seja.
Já a professora Magali, do Colégio Catarinense, não concorda. Na escola, a brincadeira seria vetada, caso magoasse ou atingisse as crenças de algum aluno. “Se causar sentimentos ruins, não deve ser utilizada. Brincadeiras que excluem, como o Bobinho (quando uma criança fica no meio da roda, tentando pegar a bola que os colegas jogam entre si e é chamado de bobinho) podem se tornar bullying muito facilmente. Então, é preciso ter a mediação dos professores. A brincadeira proposta pela escola é sempre aquela que interage com todos e faz os alunos se sentirem bem.”
Denise aconselha que se o professor não se sente confortável com a brincadeira, ele pode buscar o contexto em que ela foi criada, para entender os motivos do uso de algum termo ou ação. “Ele pode entender porque se falava no céu ou no diabo. Mas se mesmo assim ele não se sentir bem para usá-la, ele pode trocar por outra, mas não deve transformá-la, pois isso resulta na quebra da transmissão cultural popular”, opina.
Equilíbrio de dois tempos
Tanto a tecnologia atual, quanto a tradição antiga trazem aprendizado quando utilizadas nas brincadeiras dos alunos. O segredo é o equilíbrio entre os dois tempos. É o que acredita Denise. “Equilíbrio é a palavra de ordem. Com a mediação dos professores é possível misturar os dois mundos. Existe um tempo para ficar no laboratório de informática, nas lousas inteligentes e tablets, e outro do pátio, do parquinho”, aconselha.
Seja antiga ou tecnológica, a especialista Denise ressalta a importância da brincadeira como um ato social. “As escolas precisam ter espaços livres e precisam voltar a pensar na coletividade. O ato de brincar é social, precisa ser ensinado e vivenciado com o outro. As brincadeiras antigas valorizam o contato, o abraço, o outro, humanizam. Não quer dizer que não devamos aceitar brincadeiras com tecnologia, elas têm o seu papel, mas vivemos em um mundo em que muitas culturas se misturam, podemos sim absorver o novo e reviver o que existiu de bom ao mesmo tempo.”