Com 10 anos, a melhor amiga de escola de Joana a contou que sofria violência sexual dentro da própria casa. O pai abusava dela, e levava outros caras até a casa para fazerem o mesmo. A situação chocou Joana. Uma criança. Ela queria ajudar, via que sua amiga estava sofrendo, e decidiu levar o caso para o serviço de orientação da escola. A menina, então, foi encaminhada para uma rede de acolhimento e saiu dessa situação.
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Joana não conseguiu ser a mesma depois que essa história a atravessou. No mesmo ano, se juntou a outras colegas para criar o Coletivo Luísa Marques, de mediadoras de leitura, com ações de combate à violência sexual, na EMEF Saint-Hilaire, escola pública do Rio Grande do Sul. Agora, já são cinco anos de atuação nessa frente – em um projeto que expandiu além dos muros da escola.
Esse grupo formado majoritariamente por meninas se uniu à professora Maria Gabriela, convidada para apoiá-las, e começou a atuar de criança pra criança. Criaram o que chamam de uma metodologia, que consiste em um conjunto de formas de abordar o tema aos pequenos, com explicações lúdicas e itens de apoio.
“Esse ano, quando a gente aplicou a metodologia na nossa escola, mais de 300 estudantes denunciaram que sofriam com a violência sexual”, explicou Joana. "No jardim, primeiro ano, um menininho levantou a mão quando a gente estava conversando e falou: ‘Meu avô faz isso comigo'", compartilhou.
Segundo dados do relatório Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil 2021-2023, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), nos últimos três anos, foram 164.199 estupros com vítimas de até 19 anos no País, com alta nos números nos dois anos mais recentes.
Se caracteriza como estupro, segundo o Código Penal, o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal, ou a praticar ou permitir que se pratique outro ato libidinoso com o(a) agressor(a). Caso praticado com pessoas de 14 anos, se caracteriza estupro de vulnerável -- com pena de reclusão de 8 a 15 anos.
Confira os dados organizados pelo relatório, coletados com Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social do País:
2021
- 0-4 anos: 6.096 casos
- 5-9 anos: 11.157 casos
- 10-14 anos: 22.073 casos
- 15-19 anos: 7.537 casos
2022
- 0-4 anos: 6.890 casos
- 5-9 anos: 11.750 casos
- 10-14 anos: 26.609 casos
- 15-19 anos: 8.657 casos
2023
- 0-4 anos: 8.723 casos
- 5-9 anos: 14.207 casos
- 10-14 anos: 30.695 casos
- 15-19 anos: 9.805 casos
Entre 0 a 4 anos, os registros aumentaram em 23,5%. Entre 5 a 9 anos, o crescimento foi de 17,3%. Entre 10 e 14 anos, os números se elevaram 11,4%. Por fim, na última faixa etária, foi de 8,4%.
A maior parte das vítimas são meninas, e a maioria desses estupros aconteceu em residências, tendo “conhecidos” como autores do crime.
Projeto 'pra vida'
Do coletivo, criaram o projeto Chama Violeta, que engloba a criação da edtech Lute como uma Guria, uma plataforma com trilhas de conhecimento e cursos que leva os conhecimentos de combate à violência sexual elaborados pelo grupo a professores e famílias. Esse ano, a iniciativa foi premiada nacionalmente, na 2ª Edição do Desafio Liga Jovem, competição de empreendedorismo e tecnologia na escola.
“A gente não quer que elas [as crianças] fiquem com medo. E sim que surja essa chama de empoderamento de que elas podem dizer não. Que ninguém toca no nosso corpo sem a nossa permissão”, enfatizou a menina.
O engajamento das alunas enche a professora Maria Gabriela de orgulho. “Na minha época, eu não tive essa oportunidade de ter voz, de mostrar a escola como esse espaço seguro em que crianças e adolescentes são ouvidos”, pontuou a professora.
A EMEF Saint-Hilaire é de ensino fundamental e, no ano que vem, Joana, assim como outras meninas do coletivo, irão para o ensino médio. Terão que mudar de escola. Mas, garantem: “Vamos continuar o projeto”. Toda essa experiência já marca suas vidas e tem influenciado, inclusive, no que elas querem para o futuro. Joana, por exemplo, quer ir para a área do Direito ou da Educação. Ser professora ou juíza.
ATENÇÃO! Como conseguir ajuda e denunciar
Em caso de abuso sexual infantil, ligue para o Disque 100, número do governo federal voltado para auxiliar e dar orientações em caso de violação aos Direitos Humanos. A ligação é gratuita e anônima. Ou procure pelos centros de referência em assistência social de sua cidade, que disponibilizam suporte psicológico, além de instruções.
É aconselhável ir ao Conselho Tutelar ou ao Ministério Público, bem como registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia ou fazer uma denúncia por meio do número 181. Caso haja uma emergência, ligue para a Polícia Militar no 190.