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Obra de vencedor do Nobel aborda origem de conflitos turcos

21 jul 2016 - 08h33

Certamente Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura de 2006, é o escritor europeu que recentemente melhor seguiu o conselho do velho Leon Tolstoi. O sábio russo recomendava ‘ cantar sua aldeia era cantar o mundo’. O lugarejo escolhido pelo romancista turco onde se desenrola a narrativa da fabulosa novela a “Neve’, situa-se nos confins da Anatólia Oriental. Kars (‘Neve’, em turco), é uma pequena cidade, uma espécie de encruzilhada político-cultural, onde o passado do domínio czarista ainda deixou suas marcas, misturadas às influencias armênias e de outras presenças tribais da região.

Ela, um tanto a sombra do monte Bülbül, de 3600 m., além da Armênia, é vizinha da Georgia russa, do Azeibarjão, e fica não muito distante da fronteira iraniana.

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É um tipo de Finisterra do antigo Império Otomano, encravado nas proximidades das montanhas do Cáucaso, cercado de olhares inimigos por todos os lados. Esta é a ‘aldeia’ de Pamuk (em 1990, década em que se passa a narrativa, Kars tinha um pouco mais de 140 mil habitantes).

Capa do livro "Neve", de Ohran Pamuk, vencedor do Nobel de Literatura em 2006
Capa do livro "Neve", de Ohran Pamuk, vencedor do Nobel de Literatura em 2006
Foto: Divulgação

O retorno de um poeta

Temendo a contaminação pelos efeitos da Revolução Xiita do Irã, de 1979-80, país vizinho à Turquia, os militares do alto-escalão, por seu irredutível compromisso com o estado secular kemalista, se decidiram por um golpe preventivo liderado pelo general Kenan Evren, executado em 12 de setembro de 1980.

Ocorreu que os golpistas fardados não cercearam apenas os suspeitos de radicalismo islâmico, mas simplesmente desmantelaram a maior parte do aparato institucional e político-partidário do país (somente refazendo-o quase dez anos depois, em 1989, durante a grande onda de democratização que varreu a Europa então).

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Evidentemente que os intelectuais turcos  estavam na linha de frente dos hostilizados. Foi deste modo que o poeta Ka ( o seu nome verdadeiro era Kerim Alakusoglu), de modestas simpatias esquerdistas, foi abrigar-se em Frankfurt, famoso centro financeiro da Alemanha, onde conseguiu, graças à situação de exilado político, uma razoável pensão que o permitiu sobreviver com dignidade (o país, hoje, abriga de 3 a 4 milhões de turcos e seus descendentes).

Dedicou-se então a modestos recitais junto à sua comunidade espalhada por várias cidades alemãs. Desde então, se passaram doze anos até que a morte da mãe idosa, ocorrida em Istambul, o chamou para acompanhar as exéquias. A situação política, entrementes, havia melhorado. As perseguições haviam cessado e novas oportunidades aos homens de letras pareciam se abrir.

Rumo à Kars

Naquele momento em que Ka chegara à ex-capital, a imprensa estava dando enorme destaque a uma situação deveras embaraçosa. Estudantes de uma cidade longínqua (Kars) estavam cometendo suicídio num número crescentemente assustador em protesto contra uma decisão da escola secular que não as permitia freqüentar as classes usando o clássico véu islâmico, fosse o hijab ou o niqab.

Ligado ao jornal alemão Frankfurt Allgemeine Zeitung, Ka, embarcando no Dogu Express, se predispôs a ir numa interminável viagem até o recanto perdido, distante 1424 km de Istambul, para atuar como jornalista investigativo e verificar pessoalmente as causas daquele desatino. Como uma força oculta atuando por detrás dele estava a vontade de rever uma paixão da juventude (ele estudara em Kars, quando bem jovem): a bela Ïpek, filha de Turgut bei, um ex-comunista, dono da única pousada razoável da cidadezinha. Sabia-a separada do marido e animou-se em reconquistá-la.

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Provavelmente, ele foi o derradeiro recém chegado porque, logo em seguida, uma forte nevasca isolou Kars definitivamente do mundo.       

A ‘Neve’ e a ‘Peste’

A situação em que os habitantes de Kars então se encontram lembra o cenário de ‘A Peste’ de Albert Camus. Ninguém entrava ninguém saia. A diferença é que o inimigo interno não era uma pandemia como na novela do francês, mas sim os ódios políticos e religiosos que fraturam e dilaceram não somente a Turquia de hoje, mas o Oriente Médio como um todo.

É um microcosmo de patologias sociais e paranóia politica que se fundem num mar de rivalidades irreprimíveis que vão corroendo as entranhas dos moradores, assustados com as execuções e operações de caça desencadeadas pelos republicanos kemalistas contra os islâmicos de inclinação fundamentalista.

Justamente na primeira participação publica de Ka, como vate famoso e recitador vindo do exterior, uma atração extra para o teatro local, ele se enreda sem querer na pandemia ideológica. O veterano ator Sunay bei, um tipo e tanto, que apreciava interpretar vultos históricos turcos, acumpliciado com o coronel Osman Nuri Çolak, comandante da guarnição local, decide-se por fazer da peça em que era a figura central, o ponto de partida de um golpe militar.

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Soldados disparam no público

Para completo estarrecimento da platéia, num certo momento acertado, um pelotão de soldados, colocando-se no corredor do teatro, simplesmente abriu fogo sobre um grupo de alunos do colégio religioso e outros inocentes expectadores que assistiam a encenação. Foi um choque ainda maior porque a peça estava sendo transmitida ao vivo pela TV local.

De um momento para outro Kars viu-se ocupada pelos uniformes e um ativo esquadrão da morte formada pelo MIT (Serviço secreto turco) saiu pelas ruas para liquidar com nichos islâmicos a tiros ou eficazes sumiços (o episódio claramente foi inspirado a Pamuk pelo golpe de 1980, um dos mais violentos da história turca contemporânea).

Ka em meio à confusão

A partir daquele momento, o poeta viu-se sem o desejar envolvido no conflito aberto que opunha os republicanos kemalistas aos líderes islâmicos locais, fossem eles ortodoxos ou não.  Ka, por ter ficado tantos anos no exterior, e ser aparentemente eqüidistante dos grupos que se rivalizavam, assume o papel de mensageiro no centro daquela barafunda. Ora a serviço dos golpistas ora dos chefetes islâmicos que mergulharam na clandestinidade. Assim, acelerou que atraísse a desconfiança de ambas as partes.

Um dos policiais do MIT, um tanto exaltado com a indiferença política de Ka, o repreende, lembrando-lhe que a chegada ao poder do clero xiita em Teerã, em 1979,  significou o extermínio em massa não só das prostitutas e dos homossexuais, como também de toda oposição secular iraniana.

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Milhares foram mortos a tiros ou expostos em forcas públicas pelos integrantes da Pasdaran, a Guarda Revolucionária iraniana. Era isso que ele desejava que ocorresse na Turquia?

O medo, a sensação de isolamento, as batidas no meio da noite, os caminhões militares indo e vindo carregando tropas, os jipes parados nas esquinas, os carros tenebrosos da polícia secreta, o rugido da metralha em meio ao silêncio da cidade coberta pela neve, tudo isto contribuiu para que a sensação de insegurança contaminasse a todos. O golpe era a peste.  

Ka chegou a ser levado ao necrotério para ver se identificava um assassino que, em pleno café no centro de Kars, disparara sobre o diretor de colégio público que vedara o uso do véu pelas meninas, acusado de ser o responsável pelos suicídios delas. O poeta fora testemunha involuntária do crime.

Abalado por aquele acumulo de corpos gelados pelas mesas e o forte cheiro de formol, encontrou o cadáver do jovem Nesin, um estudante de uma escola religiosa a quem entrevistara recentemente, o que o deixou profundamente transtornado. Em meio à loucura, a vocação poética repentinamente volta a ocupar sua atenção e sentimentos. Ka, como que um possuído,  começa a alinhar versos a cada momento. Mesmo no caos a inspiração não o abandona. Ao contrário, serve-lhe como refúgio à irracionalidade que o envolve.

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Uma Turquia fracionada

Para melhor entendimento do terrível episódio do Teatro de Kars é necessário uma pequena digressão histórica que nos conduz às raízes do fracionamento da Turquia em duas partes quase irreconciliáveis (não só da Turquia, como da maior parte dos países do Oriente Médio, seus vizinhos). 

Tudo teve origem na deposição do último sultão do Império Otomano Mehmed VI, ocorrida em 1923, por obra do golpe republicano desencadeado pelo general Mustafá Kemal Pacha, cognominado desde então como Kemal Attatük (o ‘pai dos turcos’).

Ele era um herói de guerra e tivera notável desempenho na defesa do país não só durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) como quando a Turquia se viu ameaçada de ver seu território ocupado por forças estrangeiras no caos que se seguiu a 1918.

Literalmente ele brotou das cinzas para recompor o estado turco. Com os carregamentos de armas que Lenin remeteu-lhe, em 1919-20, Kemal e

xpulsou as tropas dos britânicos, italianos, franceses e gregos, que tentavam tirar lascas do território nacional aproveitando-se dos tumultos e da fraqueza interna. Invasores que, quando abatidos, terminaram reconhecendo a nova realidade pelo Tratado de Lausanne, de 1923 (*)

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(*) Kemal Attatürk deve ser visto como um dos tantos tiranos nacionalistas e reformadores que surgiram em diversos países europeus na pós-Primeira Guerra Mundiais, tal como Mussolini na Itália, o ditador Primo de Rivera na Espanha, o marechal Józef Piłsudski   na Polônia, o almirante Horthy na Hungria, e assim por diante.  

A reforma Kemalista

O fundador da republica turca não se limitou a reforçar os instrumentos do estado. Desencadeou uma verdadeira revolução cultural e secular para remover para sempre os hábitos e costumes arcaicos que faziam com que o mundo otomano marcasse passo na história. Era o império mais atrasado de toda Europa e Ásia Menor. Nada inventara e nada aproveitara. “Burro como um turco” diziam deles os demais europeus.

Separou o estado da religião, alterou radicalmente o alfabeto tradicional para o latino, estimulando que trajes europeus fossem adotados (o conhecido fez, barrete em forma cônica truncada, foi substituído pelo chapéu ou pela cartola). O casamento se tornou civil, aboliu o uso de véus femininos e permitiu que as mulheres começassem a frequentar os bancos escolares (e, com o tempo, até as universidades).

Uma lufada de ar fresco percorreu o país para remover o bolor da tradição otomano-islâmica que, segundo Attatürk fora a responsável pela perda dos territórios e províncias em 1918 e tudo o que se seguiu.

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Imitar a Europa Ocidental passou a ser seu horizonte. Ou a Turquia se modernizava, ainda que com uma revolução à prussiana, conduzida de cima para baixo, ou não demoraria em deixar-se dissolver pela modernidade.

Desde então, particularmente depois da Lei da Laicização, de 1924, formou-se  uma poderosa casta burocrático-militar fixada na nova capital Ankara.

Identificando-se fortemente com a politica secular do kemalismo, apoiada socialmente pela classe média e pelas oligarquias, enquanto o restante da população, especialmente a mais pobre, continuou devota ao Corão e obedecendo os guias religiosos. Estes, como não poderia deixar de ser, viram na república uma forma do demônio se manifestar.

A partir daí uma espécie de tensão permanente entre as duas Turquias (a secularista e a islâmica) jamais deixou de esmorecer.

Agravou-se o problema com a constante comparação com o Ocidente, fazendo com larga parte da população se sentisse psicologicamente inferiorizada quando confrontada com o bem estar dos europeus.

Situação que se ampliou ainda mais com a corrente de imigração turca para Alemanha Ocidental, na década de 1960. (*) Daí surgirem movimentos ultranacionalistas e xenófobos, como também redobrou a intolerância dos governos para com os seguidores do Profeta (apontados pelos kemalistas como responsáveis pelas dificuldades em fazer a nação progredir). Deste modo, além do embate entre seculares e devotos, o país se viu envolvido em crescentes querelas sobre os valores ocidentais, vistos como corrompedores pelos religiosos e outros seguidores da tradição islâmica.

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(*) Com a construção do Muro de Berlim, em agosto de 1961, a Alemanha Ocidental abriu suas fronteiras para ‘trabalhadores convidados’ para se instalarem preferencialmente em Berlim.

O ator e o profeta

Ao histriônico Sunay bei, o ator que emergiu do palco para a história como líder do golpe militar de Kars, Opamuk contrapõe o fascinante personagem de ‘Azul’, um líder da resistência islâmica que se acoitava na cidade no momento em que a neve tudo cercava. Vivia na mais completa clandestinidade, tentando escapar do esquadrão da morte republicano. É um dos personagens secundários mais fascinantes do romance.

O fato de ele ser um ativista do movimento religioso anti-kemalista, não evitava que ele se envolvesse em tórridos casos amorosos com algumas das suas seguidoras que davam a vida por ele. 

É entre estes dois personagens que Ka zanzava um tanto estonteado, desejando cada vez mais resolver sua questão amorosa com a bela Ïpek e dar o fora daquela situação claustofóbica logo que o clima assim permitissem.

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O final é inusitado. Sunay bei novamente recorre à outra peça televisada para atuar como mártir do kemalismo, oferecendo-se em sacrifício à causa. Logo a redoma de neve se desfaz e o golpe se dissolve junto com o gelo. O poeta, repelido definitivamente pela sua paixão, dizendo que Kars era ‘o lugar onde Deus não existe’, reembarca para a Alemanha para levar uma vida ainda mais solitária e angustiada. Tornou-se o paradigma do intelectual turco contemporâneo que rompeu com suas raízes, mas não soube mais substituí-las por outras. (*)

(*) Nota do autor: a resenha centrou-se nos eventos políticos e não nos românticos em vista de ser um site dedicado à história e não à literatura.

Fonte: Especial para Terra
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