A fotografia atual da educação no país mostra uma imagem evidente de desigualdade no que se refere à equidade racial, para qualquer aspecto que se analise. Um exemplo disso é o desempenho de aprendizagem dos estudantes. O Núcleo de Estudos Raciais do Insper colocou lado a lado os dados de alunos brasileiros nos testes de português e de matemática do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), de 2007 a 2019, fazendo o recorte por cor/raça e também por gênero. Ao longo do período, as notas nos dois componentes disciplinares cresceram, mas os maiores avanços foram registrados por alunos brancos. Eles aparecem com maiores notas que negros nos estados mais ao Sul; já mais ao Norte, os alunos negros conseguem melhores desempenhos, mas sem a mesma magnitude que acontece no Sul com os brancos. O estudo também identificou uma grande diferença no desempenho entre alunos pretos e pardos, com pretos atingindo notas bem mais baixas que estudantes pardos, o que demonstra que a disparidade não se limita ao recorte por perfil socioeconômico.
Além dos problemas de aprendizagem, jovens negros também são as principais vítimas da evasão escolar: dos 10 milhões de jovens brasileiros entre 14 e 29 anos que deixaram de frequentar a escola, segundo PNAD Educação 2019, mais de 70% eram pretos e pardos. E, com a pandemia, os dados ficaram ainda mais alarmantes. Segundo o relatório do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), em 2020, 30% dos jovens negros afirmaram que não pretendiam voltar à escola. Analisar os dados socioeconômicos gerais da população negra, que mostram as dificuldades de pretos e pardos de acesso a saúde, emprego, moradia e cultura, ou que mostra os dados agudos de violência aprofundam ainda mais a complexidade que envolvem as condições de vida da população negra, e que impactam também a formação dos jovens.
A escola, como ambiente social, reproduz o racismo estrutural e intersubjetivo que está entranhado na história da formação do país e que persiste na sociedade brasileira. O preconceito e a discriminação também moldam o racismo escolar, concretizado em tratamentos e incentivos diferenciados entre alunos brancos e negros, em currículos que não dialogam com a cultura afro-brasileira e que promovem uma visão eurocêntrica da história nacional e mundial, por materiais didáticos pouco diversos e representativos, e que dão poucos subsídios para a construção de práticas pedagógicas antirracistas, na falta de priorização de formações continuadas que deem concretude para a inclusão da temática racial nos componentes curriculares, que muitas vezes se limitam às disciplinas de humanidades, além de uma baixa expectativa sobre o desempenho, que assola e desestimula os estudantes negros a seguirem em frente.
Pensar na implementação de uma educação antirracista, que garanta que todo estudante negro chegue à escola, entre – seja e se sinta acolhido, ouvido e representado –, tenha sucesso e consiga encerrar o processo de aprendizagem com as mesmas oportunidades que os brancos é, não só urgente, como imprescindível se desejamos em um país justo, em que todos, de fato, tenham os mesmos direitos.
Gestores escolares e educadores que já entenderam a importância da equidade racial para a educação sabem que repensar as práticas na sala de aula pode ajudar os alunos negros a não ficarem para trás no cotidiano escolar.
Dentro do projeto Escolas Conectadas, plataforma online gratuita de formação continuada para educadores, a Fundação Telefônica Vivo reúne diversos planos de aula elaborados por cursistas ao longo de mais de 20 anos e que foram organizados em formato de livro – “Escola para Todos: promovendo uma educação antirracista”. A intenção ali é estimular práticas escolares que consigam aterrissar a Lei n. 10.639 – que estabeleceu a obrigatoriedade do currículo escolar incluir temáticas relacionadas às histórias e culturas africanas e afro-brasileiras e firmar a celebração do dia 20 de novembro como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra ) –, que este ano completa 20 anos de existência. Ela foi a primeira a colocar a temática na mesa, seguida pela Lei n. 11.645, em 2008, que instituiu a obrigatoriedade da inclusão de história e cultura dos povos indígenas no currículo.
Mas ainda há de se avançar muito no direito à aprendizagem dos alunos negros tanto quanto acontece com alunos brancos. Lembro aqui do trabalho do professor Vanisio Luiz da Silva, doutor em educação e pesquisador na área de etnomatemática e cultura negra. Ele traz em seu trabalho reflexões sobre o impacto do apagamento de conhecimentos produzidos pela população negra na aprendizagem dos estudantes. Além disso, há uma problemática na didática da matemática, que requer um olhar para a formação dos professores. Mudar a forma de ensinar poderia ajudar a quebrar padrões de desigualdade e injustiça que são perpetuados nas salas de aula.
Mas garantir a equidade racial no ambiente escolar impõe desafios que extrapolam as ações nas aulas. Os educadores são a linha de frente de um plano maior, que deve envolver governos, iniciativa privada e sociedade em geral. É preciso que uma série de mudanças aconteça no âmbito educacional, que passa pela sensibilização dos técnicos e formadores das secretarias de educação e gestores escolares, assim como a atualização e implementação dos currículos, aprimoramento dos espaços, adaptação das linguagens e sensibilização das relações interpessoais. O documento “Equidade Étnico-Racial na educação - Recomendações de políticas de equidade étnico-racial”, construído por uma coalizão de organizações da sociedade civil publicado em dezembro de 2022, busca trazer reflexões e propostas ao governo federal e governos estaduais que tomaram posse neste ano para apoiar a mudança da rede pública de ensino.
Entre as estratégias defendidas pelo documento estão o avanço de políticas de formação continuada e expansão de repertório na temática de Educação das Relações Étnico-Raciais para professores, gestores escolares, equipe de regionais e secretarias de Educação e demais profissionais da Educação Básica; e revisão dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) com a participação ativa da comunidade e demais materiais pedagógicos para a inclusão transversal, interdisciplinar, intencional e sistêmica da Educação das Relações Étnico-Raciais. Na ponta, significa fortalecer práticas pedagógicas e todo um ambiente escolar que estimule, inclua e valorize as trajetórias de estudantes negros.
Não podemos imaginar que conseguiremos formar uma nova geração para uma economia que vai ser cada vez mais digital se, antes, não olharmos para uma formação básica que acolha a todos na mesma medida de suas necessidades e que ofereça as mesmas chances equânimes de aprendizagem e desenvolvimento integral dos estudantes. A equidade racial é uma demanda obrigatória para nossa sociedade e, mais ainda para crianças e jovens, que precisam contar com a educação como alavanca para um futuro digno e promissor. Definitivamente, não dá para falar em melhoria da qualidade da educação brasileira sem falar de equidade racial.
Esse texto contou com a colaboração de Cleidson Santos Cardoso Borges, de Projetos Educacionais da Fundação Telefônica Vivo.
- Inclusive, hoje, 05, o Terra Educar lança uma produção original em parceria com o Afrofile sobre Educação Afrocentrada. Assista ao primeiro episódio abaixo: