Sociabilidade, aprendizado e pertencimento são termos que definem muito bem a importância das bibliotecas. Ao menos são as palavras que Jurandy Valença, diretor da Biblioteca Mário de Andrade, utiliza para se referir a esse espaço onde muitas gerações puderam viajar o mundo sem sair de seu país.
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Na era de arquivos digitais, Kindles, e-books e PDFs, as bibliotecas estão longe de chegar ao fim. Primeiro, porque existe uma lei segundo a qual todas as escolas do Brasil devem ter uma biblioteca com acervo mínimo de um título para cada aluno matriculado, além de um bibliotecário por colégio.
Depois, porque, segundo Jurandy, a biblioteca se tornou o espaço de integração entre as diversas artes, e é também porta de entrada para que pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica tenham acesso a cultura.
"A biblioteca é frequentada também por moradores de rua. Nós convidamos eles sempre que tem uma apresentação, uma atividade, uma oficina, um espetáculo de teatro", conta o diretor da segunda maior biblioteca pública do Brasil, e a maior de São Paulo. "Então, vemos o quanto as bibliotecas são importantes na democratização do conhecimento. Nada se compara a você estar nesse ambiente magnífico".
O caráter inclusivo é reconhecido pelo governo, segundo lista o secretário de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura, Fabiano Piúba. Em entrevista ao Terra, o gestor cita, por exemplo, a inclusão de todas as bibliotecas no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Ou seja, as unidades cadastradas no sistema nacional de bibliotecas públicas, sejam elas municipais, estaduais ou comunitárias, terão seus acervos atualizados anualmente.
"Temos que estar o tempo todo apertando as teclas do F5. As bibliotecas sempre foram espaços de tecnologias, porque elas atuam ali com a informação, com o conhecimento e com a leitura. E uma das tecnologias sociais mais inventivas criadas pelo ser humano foi a leitura. A leitura é uma tecnologia social, e é uma tecnologia de ponta. Só que a gente não tem mais acesso à leitura apenas no mesmo formato de antigamente e as bibliotecas estão em um processo de adaptação, mas mantendo-se como espaços culturais vivos e conectados à memória", diz Fabiano Piúna, secretário do Ministério da Cultura
A regulamentação da Política Nacional de Leitura e Escrita, prevista para sair até junho, é crucial para orientar as ações e metas do Plano Nacional de Livro e Leitura dos próximos dez anos.
"A biblioteca tem se atualizado tecnologicamente, mas tem uma natureza dela que é importante nunca se perder, que é ser um espaço cultural vivo, de conexões com a memória,como um patrimônio cultural. A maioria das bibliotecas tem acervos preciosos e quando a gente alia isso com o universo da cultura digital, a gente amplia esse acesso", destaca.
Aumento de leitores no ensino fundamental
Embora ainda não haja metas específicas para estímulo à leitura, a vice-presidente do Conselho Federal da Biblioteconomia e coordenadora da Comissão de Bibliotecas Escolares, Maria Isabel de Jesus Sousa Barreira, explica o quanto é importante que esses equipamentos estejam dentro das instituições de ensino. De acordo com ela, desde que foi estabelecida a Lei 12.244, houve significativo aumento no número de leitores na faixa etária do ensino fundamental.
É o que aponta a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, com dados de 2019. O estudo mostrou que, naquele ano, a única faixa etária que apresentou aumento no número de leitores foi de 5 a 10 anos de idade: passou de 67% (2015) para 71% (2019).
"Esse dado é muito relevante, pois demonstra a necessidade e o impacto das bibliotecas escolares nesse contexto. Nós vivemos em um mundo onde há muita desigualdade social e as crianças terem acesso à leitura faz toda a diferença", destaca Isabel.
Segundo ela, a realidade das bibliotecas escolares varia de acordo com a verba disponível para sua manutenção e atualização tecnológica. Fatores como automação dos serviços, disponibilização de acesso à internet, digitalização de conteúdos para alunos e uso das redes sociais para divulgação e interação.
"Isso é um fato que impacta tanto as escolas públicas quanto as privadas, já que a disponibilidade de recursos determina o aparato tecnológico oferecido. Por isso, é muito importante que hajam políticas públicas que garantam um bom aparato a esses equipamentos", explicou.
Ainda segundo dados da pesquisa, aproximadamente 34 milhões de indivíduos visitam bibliotecas no País. A maioria é proveniente da classe C (49%), seguida pela classe B, com 26%, e D/E, com 21%. Os estudantes representam 60% dos frequentadores. A principal razão para frequentar bibliotecas é a leitura de livros para fins de pesquisa ou estudo (51%) e para leitura por prazer (33%).
Na maior parte, os frequentadores avaliam positivamente o atendimento nas bibliotecas (96%) e entre os que não frequentam esses equipamentos, 34% citam falta de tempo e 20% alegam não gostar de ler. Além disso, 13% mencionam a ausência de bibliotecas próximas como motivo para não frequentá-las.
Bibliotecas para além dos livros
Por outro lado, as bibliotecas também são apropriadas para outros usos, para além de um mero "depósito" de livros. Assim como pode servir de 'arena' para integração entre as manifestações artísticas, Maria Isabel cita também a realização de um campeonato de xadrez nesses espaços.
"As bibliotecas estão constantemente buscando formas de utilizar a tecnologia para ampliar seu alcance e oferecer novas experiências aos usuários", destaca. "[...] são organismos vivos que acompanham o desenvolvimento da sociedade. Elas se adaptam às novas tecnologias e oferecem possibilidades interativas de acesso ao conhecimento, seja em formato físico ou digital".
Nesse momento de transformação das bibliotecas, os bibliotecários também ganham novas atribuições. Na Biblioteca Mário de Andrade, que possui acervo com 3 milhões de itens, que incluem livros, mapas e obras raras, os profissionais passaram a se tornar mediadores e curadores de leitura. Se em algum momento os bibliotecários foram "catalogadores" de livros, hoje oferecem orientação qualificada e confiável aos visitantes.
"Bibliotecas não são apenas depósitos de livros, que podem ser substituídos por um HD com milhões de e-books. Você pode ter um HD que cabe ali milhões de e-books, mas uma biblioteca é um espaço físico de sociabilidade, de aprendizado, de estudo, de pertencimento", diz Jurandy Valença, diretor da Biblioteca Mário de Andrade.
A biblioteca paulistana recebe todos os meses cerca de 50 atividades culturais gratuitas, que vão de lançamentos e saraus literários a exposições de arte, espetáculos teatrais e oficinas. Jurandy fala com orgulho do projeto "Sons e Letras", em que músicos renomados compartilham o processo criativo por trás de suas composições. A biblioteca possui até espaço compartilhado para trabalho, o coworking.
"Nós implantamos uma grande revolução na biblioteca, transformando ela em um centro cultural e tivemos um aumento de 1500% de público", destaca Jurandy.
Para garantir o acesso ao conhecimento a todos, Jurandy lista como a tecnologia tem sido aliada da leitura. Além dos computadores para pesquisa, a Biblioteca Mário de Andrade oferece óculos especiais para pessoas com baixa visão, permitindo-lhes ler livros de forma acessível, e parte do acervo de obras raras está disponível digitalmente para consulta. O YouTube também é utilizado para disponibilizar conteúdos da biblioteca.
"Aqui você terá os livros que precisar, sem ter nenhum tipo de dúvida sobre o conhecimento que está acessando. Em tempos de fake news, é ainda mais importante que valorizemos os livros, que é onde temos certeza de encontrar a veracidade, as palavras que o autor escreveu, a história a ser contada. Aqui nos preocupamos em ter uma biblioteca viva, ocupada. Tudo isso é muito importante, porque preservamos algo que é essencial para a sociedade", finaliza.