Em meio ao avanço das tecnologias, o uso e contato cada vez mais precoce das crianças com as redes sociais acende o alerta de especialistas e organizações de saúde em todo o mundo. Apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que haja limitação do tempo de tela na primeira infância, a realidade é bem diferente em vários países.
No Brasil, por exemplo, uma pesquisa realizada em 13 capitais revela que 33% das crianças de até 5 anos ficam mais de duas horas por dia em frente às telas, segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Por sinal, grande parte desse tempo é gasto nas redes sociais, como o YouTube e TikTok.
Nesse cenário, um levantamento da KidsCorp mostra que assistir a vídeos no YouTube é a atividade preferida de 78% das crianças e adolescentes no País. Já o TikTok é mais usado por 34% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, de acordo com um estudo do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
Sem interesse para aprender
Com o uso excessivo das redes sociais em casa, a criança pode ficar dependente dessa interação e perder o prazer no processo de aprendizagem na escola. Nesse sentido, a psicopedagoga Ildeci Bessa avalia os desafios da educação diante da rapidez e estímulo quase instantâneo dos conteúdos digitais.
"A aula fica sem prazer, a motivação vai embora. Os professores têm um desafio muito grande nesses novos tempos de contrapor essas crianças. Então, eles vão para sala de aula e não conseguem se concentrar. O pensamento de querer tudo muito rápido, respostas rápidas... Não conseguem fazer a leitura de um texto muito longo, porque cansam mentalmente", destaca a psicopedagoga Ildeci Bessa.
Além da concentração, a especialista diz que as funções executivas em sala de aula são afetadas, como o comprometimento na interpretação de uma leitura, no raciocínio e na associação de ideias. Outro fator observado por ela é a falta de flexibilidade cognitiva em decorrência da alta exposição às redes sociais.
Na prática, a criança perde a capacidade de selecionar, integrar e memorizar informações.
"O planejamento, que também é uma função executiva, é prejudicado. E, principalmente, a flexibilidade cognitiva, que é uma capacidade que a gente utiliza para resolver um problema. A gente vê crianças em sala de aula com rigidez cognitiva, sem conseguir resolver questões que elas poderiam resolver de diferentes formas", alerta.
Apesar dos impactos negativos, a psicopedagoga pondera que os avanços tecnológicos podem ser benéficos para o aprendizado e desempenhar um papel importante na comunidade escolar, incluindo a interação e promoção do acesso de crianças com deficiência.
"Um ponto positivo é que, por exemplo, uma criança com deficiência auditiva, com comprometimento na capacidade de comunicação, pode utilizar as redes para se comunicar. Os pais dessas crianças podem se organizar para trocar experiência, conhecimento, avançando em propósitos de práticas inclusivas", aponta.
Impactos
Além do processo de aprendizagem regular, na escola, o acesso às redes sociais de forma precoce afeta outros aspectos do desenvolvimento da criança. A neurologista infantil Renata Episcopo aponta a gravidade desse tipo de exposição ainda nos primeiros anos de vida.
"Diferentes estruturas e regiões cerebrais amadurecem a partir da alimentação adequada, além de estímulos como sons, tato, olfato, troca de afeto, estímulos visuais/luminosos e socialização", pontua.
Segundo a especialista, o uso precoce e excessivo de redes sociais na infância incorre desde em privação do convívio social até a ausência de experiências ambientais necessárias para o desenvolvimento da criança.
"Isso pode levar a problemas visuais, auditivos, transtornos posturais, além de impactos na comunicação, aprendizagem e no comportamento, como atraso na linguagem, déficit na atenção, na memorização, na coordenação motora, aumento da sonolência diurna, ansiedade, impulsividade e irritabilidade. O uso excessivo também promove modificações no funcionamento cerebral, predispondo a dependência", enumera a neurologista Renata Episcopo.
A neurologista infantil ainda alerta para a falta de monitoramento e acompanhamento de um responsável durante o acesso das crianças às redes sociais e outras tecnologias, como os jogos eletrônicos. Segundo ela, deixar a criança sozinha a expõe a representações de automutilação, práticas sexuais, assédio e cyberbullying.
Como usar redes sociais de forma saudável
Para Michelle Norberto, especialista em psicologia educacional e educação inclusiva, o diálogo é essencial para um uso mais equilibrado das redes sociais, além do próprio exemplo dos responsáveis dentro de casa. Inclusive, a especialista aponta que o excesso vem acompanhado de mudanças no comportamento das crianças e devem ser observados de perto.
"Eu sempre digo que é bem importante a gente estar atento a toda e qualquer mudança que seja repentina no comportamento das crianças, tanto para mais como para menos. Então, assim, está mais irritado, mais choroso, está o tempo todo em alerta, mas também vale observar o oposto. Por exemplo, quando a criança é falante e passa a ficar mais calada", recomenda ela, que atua no Centro de Inovação Pedagógica, Pesquisa e Desenvolvimento (CIPP) dos colégios do Grupo Positivo.
Mesmo com as restrições, o uso das redes sociais deve ser tratado com cautela e conversado entre as crianças e os responsáveis, de acordo com a psicóloga. Isso porque a proibição pode estimular a comparação com outros colegas, considerando a interação e pertencimento nos grupos.
"Não liberar esse acesso para as crianças é uma questão delicada porque tem a comparação dos grupos, dos adolescentes. Então, por exemplo, começa com a criança ou adolescente dizendo: 'Ah, mas o meu amiguinho tem, meu colega tem, todo mundo da minha sala tem'. Então, assim, é muito difícil realmente evitar esse contato", acrescenta Michelle Norberto, especialista em psicologia educacional.
Nesse caso, a especialista reforça a necessidade do acompanhamento durante o uso das redes sociais por meio do diálogo e da construção de uma relação de respeito entre pais e filhos. Se esse comportamento existir desde cedo, na adolescência vai ficar mais fácil de a criança entender que o acompanhamento dos pais é por cuidado, não por vigilância.