Luiz Gama, Teodoro Fernandes Sampaio, Maria Firmina dos Reis, Irmãos Rebouças, Carolina Maria de Jesus. Essas são só algumas das personalidades negras dentre muitas outras que foram importantes em suas respectivas áreas de atuação no Brasil, no entanto, suas histórias são pouco ou até mesmo não conhecidas por grande parte dos brasileiros.
Uma educação afrocentrada -- na qual a cultura, história e perspectivas africanas e afrodescendentes estão no centro do processo de ensino e aprendizagem -- minimizaria o desconhecimento sobre figuras tão significativas para a formação da sociedade brasileira. E é isso que a série audiovisual do Terra, que será lançada nesta quinta-feira, 5, tenta resgatar, em parceria com a Afrofile.
- O primeiro, de 12 episódios, tem como tema a Lei 10.639/2003, que estabelece o ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas. Nas próximas semanas, serão abordados temas como raça e racismo; monumento à Independência; alforria; e trajetória de personalidades marcantes, como Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro e Luiz Gama.
Ao mesmo tempo que valoriza e reconhece a contribuição significativa das culturas africanas e da diáspora africana para a humanidade, a educação afrocentrada combate estereótipos, preconceitos e desigualdades historicamente associados às comunidades afrodescendentes.
"Na escola, nas universidades, dificilmente encontra-se uma pessoa que tenha lido um filósofo africano, que tenha estudado um matemático, um físico negro, que tenha lido literatura africana. É como se o continente africano não produzisse ciência, não produzisse conhecimento. E no Brasil, um país majoritariamente negro, não vemos na base de estudos nenhum referencial dessa ciência produzida no continente negro. Isso diz para gente que esse continente, politicamente, historicamente, está excluído de uma perspectiva de criador de ciência, de referencial de estudo", destaca a historiadora Viviane Morais, co-fundadora da Afrofile.
A plataforma de conteúdo é uma ferramenta para o cumprimento da legislação que há 20 anos tornou obrigatória a inclusão da herança africana no currículo educacional além de meros tópicos culturais, incorporando uma perspectiva africana em todas as disciplinas.
70% dos municípios descumprem lei, aponta estudo
Apesar disso, 7 em cada 10 secretarias municipais de educação não fizeram nenhuma ação ou poucas ações para fazer cumprir a lei. O dado é de uma pesquisa divulgada em abril pelo Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher Negra.
O levantamento ouviu gestores de 1.187 secretarias municipais de educação, o que corresponde a 21% das redes de ensino dos municípios.
- 29% das secretarias têm ações consistentes e perenes de atendimento à legislação;
- 53% fazem atividades esporádicas, projetos isolados ou em datas comemorativas, como no Dia da Consciência Negra (20 de novembro);
- 18% não realizam nenhum tipo de ação;
- Juntas, o percentual de secretarias que não adotam nenhuma ou poucas ações chega a 71%.
O dado estatístico é observado também na prática. Viviane, que é historiadora e doutora em História Social pela PUC São Paulo, comenta que ainda hoje há escassez de representação de intelectuais africanos nos currículos tradicionais, mesmo em um país de maioria negra, como o Brasil. Essa falta de representação, inclusive, impede que estudantes tenham referências e modelos a seguir que reflitam sua herança cultural e intelectual.
"A gente tem uma história do Brasil que o negro aparece apenas no capítulo da escravidão, porque nem quando a gente fala da história antiga, a gente postula que a população antiga egípcia era negra. E mesmo num país como o nosso, com todo esse histórico e esses descendentes de uma região escravista que conseguiram vencer, que conseguiram se tornar intelectuais, com toda dificuldade, a gente não estuda esses referenciais dentro da escola", acrescenta.
A educação afrocentrada, reforça, é complementada à abordagem antirracista, na medida em que ambas têm como objetivo comum promover a equidade. Para Viviane, é urgente a implementação de educação afrocentrada e antirracista no Brasil, para construir uma sociedade mais justa e inclusiva.
Principais características da educação afrocentrada:
- Centrada na identidade cultural: Valoriza a identidade cultural dos alunos afrodescendentes, ajudando-os a desenvolver um senso de pertencimento e orgulho em relação às suas raízes africanas;
- Currículo inclusivo: É revisto para incluir uma ampla gama de contribuições africanas e afrodescendentes para a ciência, arte, literatura, história, música e outras áreas do conhecimento;
- História e cultura africanas: Ênfase para a história da África, às civilizações africanas antigas e para a diáspora africana, incluindo o período da escravidão e a luta por direitos civis;
- Luta contra o racismo: A educação afrocentrada capacita os alunos a compreenderem e combaterem questões de racismo e discriminação;
- Inclusão de perspectivas diversas: Reconhece que as experiências e identidades dos afrodescendentes podem variar amplamente, portanto, há variedade de perspectivas e vozes dentro dessa comunidade;
- Desenvolvimento da autoestima: Incentivo à autoestima dos alunos afrodescendentes, ou seja, confiança em suas habilidades e potencialidades;
- Participação da comunidade: É comum envolver a comunidade, como pais, famílias e líderes comunitários na educação, para promover uma abordagem holística no aprendizado.
"Dificilmente você vai encontrar um estudante de Engenharia brasileira que já leu, viu um projeto ou ouviu falar nos Irmãos Rebouças, ou que sabe que Teodoro Sampaio foi um engenheiro importante. Ou um estudante de Direito que tem aí o Luís Gama como um referencial. Então onde está o problema disso? É que a gente tem realmente um continente e uma raça excluída quando a gente pensa em conhecimento. Então uma das perspectivas de educação afrocentada é trazer de volta pra esse universo do conhecimento a história da humanidade completa. Não uma história cisada, onde o nosso referencial é só a Europa", destaca Viviane Morais.
Professores e combate ao racismo
Apesar de ainda não ser realidade em todos os municípios, há professores que mostram o quanto a educação afrocentrada é possível e significativa para a formação dos alunos. É o caso de Léo Bento, que atua como educador de História em uma escola particular de São Paulo.
"A escola não tem uma proposta de educação afrocentrada, mas tem uma proposta de educação que leva em consideração a Lei 10.639", explica o educador. "A gente percebeu que não não dava só para colocar as crianças negras na escola, a gente precisava criar outros mecanismos também".
Para garantir que os alunos negros tenham uma experiência inclusiva e enriquecedora, o professor e sua equipe desenvolveram o "Manual para Escolas Antirracistas", que oferece orientações sobre como abordar questões raciais na escola. O manual não se destina apenas à comunidade escolar, mas também a todos que desejam aprender mais sobre o tema.
Além do manual, a escola também implementou uma comissão de professores que atua como um canal de diálogo entre a equipe pedagógica e a gestão da instituição. Essa comissão tem como objetivo promover a conscientização sobre questões raciais e fomentar discussões produtivas, segundo conta.
Já em sala de aula, Léo Bento diz trabalhar com diferentes perspectivas históricas e culturais, sem se limitar à visão eurocêntrica comum. Entre os temas que destacam contribuições importantes da população negra e indígena estão: Revolução Industrial, imperialismo e subjugação do continente africano.
Para o professor, é importante não apresentar apenas a perspectiva de sofrimento relacionada à negritude, mas também destacar líderes e figuras positivas da história negra. Com isso, os estudantes passam a ter uma visão mais ampla das relações raciais no Brasil, o que contribui para uma convivência mais harmoniosa e a construção de um ambiente escolar mais inclusivo.
"Da perspectiva de aprendizagem, isso é muito importante para ver outras formas de se contar nossas histórias, de ver outras histórias, de ver outras possibilidades de acessar literaturas que são negligenciadas ou que não são colocadas em prática. Além disso, podemos abordar várias questões relacionadas a conhecimentos que a população negra e indígena detém há muito tempo e que não são valorizadas. Então a gente tenta fazer esses resgates dentro da escola", destaca o professor Léo Bento.
O professor e a esposa ainda alimentam as páginas "Quilombo Literário" no YouTube e no Instagram, onde disseminam a literatura produzida por pessoas negras.
Educação afrocentrada musical
Outro exemplo de educador que atua com uma educação que visa o combate ao racismo é Allan Perviguladez. O educador criou um gênero musical próprio: a Música Popular Brasileira Infantil Antirracista (MPBIA).
Empenhado na promoção da educação antirracista, Allan lançou a turnê #meucabeloébembonitotour, levando músicas com essa temática para escolas em várias regiões do Brasil. A ideia é divulgar a MPBIA e sua mensagem de empoderamento.
Em entrevista concedida ao Terra em junho deste ano, ele contou que sua jornada começou com a música "Meu Cabelo é Bem Bonito", que dá nome à turnê e celebra todos os tipos de cabelos. A canção logo viralizou nas redes sociais e gerou mais de 50 milhões de visualizações no Instagram.
O MEC e a Lei 10.639/2003
À reportagem do Terra, o Ministério da Educação afirmou que tem se atentado à implementação da Lei 10.639/2003. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), por exemplo, trouxe no questionário do SAEB um item relativo à educação para relações étnico-raciais. Além disso, o Censo Escolar de 2019 e 2022 trouxe dois itens relativos ao tema.
No âmbito do MEC, a recriação da Secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), em 2023, e a instituição de uma Diretoria de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola, têm permitido a construção de um sistema de monitoramento da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) em parceria com o Inep. Com isso, disse o MEC, será possível monitorar as dimensões que envolvem a Lei 10.639/2003.
Segundo a pasta, a Lei 10.639/2003 não disciplina uma "educação afrocentrada". O que se propõe, normativamente, é que os currículos e as práticas intraescolares que lhe são derivadas reflitam uma educação antirracista. Isso implica considerar:
- O estudo da História da África e dos Africanos;
- A luta dos negros no Brasil;
- A cultura negra brasileira;
- O negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
Por competência legal, acrescentou o MEC, cabe aos estados e municípios a oferta e gestão das políticas educacionais voltadas à educação básica. À União cabe a coordenação da política nacional de educação, atuando de forma redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias.
Com relação à importância do cumprimento da Lei dentro das instituições de ensino, o MEC ressalta que a Lei pode trazer contribuições de várias ordens às instituições de ensino. Uma delas diz respeito à garantia da representatividade e reposicionamento da contribuição do povo negro na cultura, história e formação da sociedade brasileira. Decorrente dela está um elemento central da política educacional, que é a aprendizagem das crianças negras dentro das redes de ensino.
"A garantia da representatividade nos currículos, nos materiais didáticos, na composição das turmas, na organização dos ambientes escolares tem efeito sobre a aprendizagem das crianças, o que, por sua vez, está relacionado à redução das desigualdades intraescolares. Uma segunda ordem de contribuição diz respeito à compreensão mais estrutural da Lei que deve ser entendida como formação docente, mas também para outros profissionais de educação, bem como financiamento educacional, políticas avaliativas, produção de indicadores compostos e políticas pedagógicas", disse Ministério da Educação, por meio de nota.