Asmara Backerdwing Sainty já vivia no Brasil há quase três anos quando, rolando despretensiosamente o feed do Facebook, seu pai fez uma descoberta que reacendeu um sonho de infância da jovem haitiana. Era uma postagem a respeito da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) e seu programa para inclusão de imigrantes e refugiados. Em 2019, a ideia de ser médica, que havia se tornado um pouco mais distante quando deixou o Haiti para trás e lançou-se em um país onde sequer dominava o idioma, passou novamente a ser uma possibilidade para ela.
Hoje, aos 25 anos de idade e no sétimo período do curso de Medicina, Asmara conta orgulhosa que já é "meio" médica e sonha agora em se tornar pediatra. Ela entrou para a estatística de apenas 1% dos imigrantes e refugiados no mundo que conseguem ingressar no Ensino Superior, segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Ao GUIA DO ESTUDANTE, a estudante de Medicina falou sobre os desafios de deixar seu país natal - que vive há anos uma crise humanitária -, o apoio que encontrou nos amigos e a oportunidade oferecida por uma universidade pública, de qualidade "em que até estrangeiros têm o direito de ingressar".
Um caminho pavimentado por muita gente
A trajetória de Asmara até a universidade foi construída a muitas mãos. Primeiro, é claro, a de seu pai, que descobriu a oportunidade oferecida pela Unila a refugiados. Mais tarde, a do amigo que a ajudou a se inscrever no processo seletivo para concorrer a uma vaga no curso de Medicina.
Diferentemente dos vestibulares tradicionais, em que os estudantes realizam uma prova e são selecionados pelo desempenho obtido, as vagas para refugiados e imigrantes na Universidade Federal da Integração Latino-Americana são ofertadas por um outro processo que não conta com uma prova, mas com análise de documentos e da trajetória escolar dos candidatos - algo parecido com o que ocorre em universidades americanas, por exemplo.
O edital do Processo Seletivo para Refugiados e Portadores de Visto Humanitário de 2024 estabelece, por exemplo, que os interessados devem, além de se encaixar nos requisitos para ser reconhecido como refugiado, enviar documentos pessoais, histórico escolar ou certificados de conclusão do Ensino Médio por outras vias - como o Enem ou o Encceja. Também é necessário que o candidato fale Espanhol ou Português.
Foi em um processo seletivo semelhante a este - o Programa de Seleção Internacional - que Asmara contou com a ajuda do amigo em 2019, quando ainda morava no Mato Grosso. Meses depois, recebeu a carta de aceite e passou a "contar os dias" para uma nova mudança. No ano seguinte, viveria em Foz do Iguaçu, onde fica o campus da universidade, e teria a oportunidade de conviver com dezenas de colegas haitianos que também estudavam na universidade.
O Haiti daqui
A Unila conta, atualmente, com 121 estudantes que ingressaram na universidade por meio dos processos seletivos voltados a imigrantes e refugiados. Deles, 64 são haitianos. Foi essa comunidade que abraçou Asmara antes mesmo que ela fosse aprovada. "Eu já tinha entrado em contato com alguns colegas que estudavam aqui na Unila, para saber como era", relembra. Quando foi finalmente aprovada, pôde conhecer de perto outros estudantes haitianos que a prepararam para viver a universidade - e o Brasil.
Ela conta que todos os anos, o grupo de haitianos na Unila prepara uma festa de recepção para receber os calouros conterrâneos. É um momento de celebração, mas também de partilhar experiências e conselhos. "Eles falam pra gente como é a vida acadêmica, falam da adaptação cultural, a questão do racismo, xenofobia, tudo". Dicas mais práticas, sobre como obter documentações e se deslocar pela cidade, não ficam de fora. "A gente sempre se ajuda", conta a estudante de Medicina.
Muitos dos amigos que Asmara fez durante a trajetória escolar no Haiti também deixaram o país e hoje estudam fora, em países como França, Estados Unidos e até Rússia. Sua trajetória foi um tanto enviesada pela dos pais, que já haviam se mudado para o Brasil alguns anos antes dela. Mas ela não se arrepende de também ter escolhido o país.
"Eu acho que só aqui no Brasil tem faculdade pública, de qualidade, onde até estrangeiros têm o direito de ingressar. Eu tenho amigos que fazem faculdade nos Estados Unidos, e eles que pagam. Na França também não é fácil. Mas no Brasil a gente tem essa oportunidade, que é um direito, de estudar e fazer faculdade pública", relata. "S e fosse para escolher de novo, eu escolheria o Brasil".
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