Recentes decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre fake news nas redes sociais e a abordagem da emissora Jovem Pan a respeito do ex-presidente e candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva vêm provocando debates entre juristas e especialistas em torno da atuação da corte.
Nesta quinta-feira (20/10), foi aprovada uma resolução afirmando que o TSE removerá sem a solicitação de partidos, coligações ou do Ministério Público conteúdo considerado inverídico ou descontextualizado na internet. O texto apenas diz que isso ocorrerá "em decisão fundamentada" do colegiado de ministros da corte.
O TSE também deu direitos de resposta a Lula em razão de falas ofensivas feitas por comentaristas da Jovem Pan contra o petista. O canal paulista, que dedica boa parte de sua programação diária a críticas ao ex-presidente, disse que foi censurado e orientou que não sejam ditos no ar termos como "ex-presidiário" e "ladrão" em referência a Lula.
Outra decisão que provocou discussão se refere a uma frase do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio de Mello sobre o processo de Lula que seria usada em uma peça eleitoral do presidente e candidato do PL Jair Bolsonaro e foi suprimida.
Veja abaixo pontos dessas decisões do TSE e o que falam especialistas em direito eleitoral e constitucional sobre o teor delas.
1. Mais poderes para o TSE retirar fake news
O TSE, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes, não aguardará pedidos de solicitação de partes atingidas ou do Ministério Público para a retirada de desinformação da internet.
Ao julgar um conteúdo problemático, a corte determinará sua remoção às plataformas no prazo máximo de duas horas. Esse prazo cai para uma hora de dois dias antes da eleição (que é no dia 30/10) a três dias depois.
Segundo Moraes, o objetivo é reduzir o tempo de informações inverídicas no ar.
Cada hora de descumprimento acarretará multa entre R$ 100 mil e R$ 150 mil. Se o mesmo conteúdo reaparecer em outros links e posts, sua derrubada deverá ser feita sem a necessidade de uma nova tramitação judicial.
Segundo a resolução, o "descumprimento reiterado de determinações" poderá levar à suspensão do acesso aos serviços da plataforma.
"Acho que isso mostra uma preocupação extrema do TSE nessa última semana de campanha. O TSE vê que daqui para frente vai ser na base do tudo ou nada. É elogiável querer proteger o eleitor contra fake news", afirma o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral.
"Mas é discutível mudar a regra do jogo aos 40 minutos do segundo tempo."
Outro ponto que Rollo vê com reservas é a interpretação de que o TSE agirá "de ofício".
"Normalmente o juiz age quando é provocado pelo Ministério Público ou por alguém ofendido. A Justiça tem que agir só quando ela é provocada. Ela não pode tomar a dianteira", diz.
Vera Chemim, especialista em direito constitucional, estranha o "poder de polícia" da corte. "Qual é a função típica do Judiciário? É julgar. O poder policial é inerente ao Poder Executivo."
Mas ela vê responsabilidade do Legislativo sobre essa situação. "Deveria ter sido feita uma lei anteriormente disciplinando o tema. E quem cria a lei é o Legislativo, não o Judiciário."
Projetos que tratam de fake news e desinformação ainda estão sob análise no Congresso.
Amplamente usados na eleição de 2022 na disputa eleitoral, os anúncios políticos pagos para veiculação em redes sociais e sites deverão ser suspensos no período de 48 horas antes do dia da votação até 24 horas depois.
2. Decisão sobre a Jovem Pan
Na última segunda-feira (17/10), sessão do TSE concedeu mais três direitos de resposta à campanha de Lula após comentários considerados ofensivos ou distorcidos sobre ele proferidos na rede Jovem Pan.
Os comentaristas da emissora não poderão repetir que o ex-presidente mente e que não foi inocentado no processo da Lava Jato — sob pena de multa de R$ 25 mil. O pedido da coligação de Lula cita que foi falado no ar durante um dos programas que "o petismo é uma escória".
Além disso, foi também determinado pelo corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, investigar se há falta de isonomia da Jovem Pan em sua cobertura, com favorecimento a Bolsonaro.
A emissora divulgou comunicado interno proibindo que seus comentaristas usem termos como "descondenado" e "chefe de organização criminosa" em referência ao candidato petista.
Na quarta-feira (19/10), a Jovem Pan veiculou um editorial afirmando que "justamente aqueles que deveriam ser um dos pilares mais sólidos da defesa da democracia estão hoje atuando para enfraquecê-la e fazem isso por meio da relativização dos conceitos de liberdade de imprensa e de expressão, promovendo o cerceamento da livre circulação de conteúdos jornalísticos, ideias e opiniões".
"Não há outra forma de encarar a questão: a Jovem Pan está, desde a segunda-feira, 17, sob censura instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral."
A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) emitiu nota afirmando que vê receio de interferência na programação das emissoras por parte do TSE.
Alberto Rollo afirma que "rádios e TVs são concessões públicas e têm que cumprir a lei. Não é falar o que quer porque 'a TV é minha, a rádio é minha'. Concessão você tem regras, e a lei eleitoral diz que rádio e televisão não podem dar tratamento privilegiado em época de eleição. Ou seja, não pode falar só bem de um e só mal de outro".
Sobre as expressões proferidas pelos comentaristas da emissora, o advogado considera que "se algum dia eu fosse condenado por alguma coisa pela qual eu pudesse ser chamado de ladrão e o meu processo fosse anulado, estaria errado me chamar de ladrão empiricamente. Ladrão é aquele que foi condenado em transitado em julgado [quando não há mais possibilidade de recursos]."
"A mesma coisa a expressão 'ex-presidiário'. Juridicamente está errado porque Lula esteve preso preventivamente, não cumpriu pena de prisão."
Já Vera Chemim considera que a decisão "fere o direito à liberdade de expressão, de pensamento e de opinião. A Constituição garante esses direitos plenamente fundamentais. Ela atropelara o direito constitucional de comunicação".
"A despeito das críticas serem extremamente duras, ácidas e até grosseiras, elas se inserem no exercício da liberdade de expressão, ainda mais quando se trata da liberdade de comunicação social."
A especialista em direito constitucional vê censura na decisão. "A Constituição garante, posteriormente a uma ofensa, um direito de resposta e uma indenização por danos materiais e morais ou pessoal. Se aconteceu, existe esse mecanismo".
3. Decisão sobre fala de Marco Aurélio
Um trecho de 7 segundos de uma entrevista com o ex-ministro do STF Marco Aurélio, que seria veiculado em uma propaganda eleitoral de Bolsonaro na quarta (19), foi substituído por um QR Code que levava a um canal de tira-dúvidas eleitorais no WhatsApp e uma frase em que se lia "suspenso por infração eleitoral".
Na entrevista, concedida à Band, Marco Aurélio dizia: "O Supremo não o inocentou [Lula]. O Supremo assentou a nulidade dos processos-crime, o que implica o retorno à fase anterior, à fase inicial".
O corte do trecho foi feito com base em uma decisão do ministro do TSE Paulo de Tarso Sanseverino proibindo que Lula fosse mencionado como "verdadeiro ladrão" e "corrupto" pelo locutor do programa de Bolsonaro, palavras que não foram usadas pelo ex-STF.
"Acho que aí o TSE errou, foi um exagero", diz Rollo.
"Lula realmente não foi absolvido. A Justiça analisa se tem prova ou não para condenar alguém ou decidir se foi absolvido. O caso da anulação da condenação foi porque a vara competente não era Curitiba, essa foi a questão."
Chemim afirma que a anulação da condenação diz respeito a "normas de caráter processual e não sobre o mérito" e também criticou a decisão do TSE sobre o spot eleitoral.
Marco Aurélio, ao jornal O Estado de S. Paulo, disse que "os tempos são estranhos. Não podemos permitir censura a quem quer que seja".
À Folha de S. Paulo, o TSE informou que "a corte não pratica censura e que todas as decisões são avaliadas em casos concretos".
4. A situação do TSE nesta eleição
O ministro Alexandre de Moraes, que conduz o processo eleitoral à frente do TSE, declarou que houve um crescimento de 1.671% na divulgação de conteúdo considerado falso se comparado com a votação de 2020 e uma alta de 436% nos episódios de violência política via redes sociais em relação a 2018.
O tribunal vem tendo que lidar com desafios como a propagação de fake news sobre as urnas eletrônicas, a necessidade de garantir segurança ao eleitor em meio à votação mais tensa em décadas e a ameaça de violência na contestação do resultado das eleições.
"É um papel extremamente ingrato [para o TSE] nesse momento político que o Brasil vive, dividido meio a meio, em que se eu não concordo com a outra metade, acham que eu não presto, sou uma pessoa ruim", afirma Rollo.
"É um papel complicado, principalmente porque no processo do direito eleitoral não se pode decidir daqui a um ano, quando as coisas estiverem mais calmas. Tem que ser na hora e às vezes acaba errando."
O advogado recorda o caso do festival Lollapalooza, de março deste ano, em que o TSE proibiu expressão política após manifestações das cantoras Pabllo Vittar e Marina (antiga Marina and The Diamonds) durante os shows.
"Decidiu na hora, decidiu errado, voltou atrás depois. Mas a decisão tem que ser na hora."
O ministro Raul Araújo, autor da decisão, acabou por derrubar a própria liminar em que mandou censurar os atos no festival dois dias depois.
"Há agora um ambiente de tensão, tanto institucional quanto no que diz respeito a cidadão de maneira geral", diz Chemim.
"Mas acho que o TSE anda pesando a mão. Acho perigoso, na minha opinião, porque agilizar a remoção de notícias falsas para dar uma resposta rápida e repentina pode levar em algum contexto a uma sugestão de caráter antidemocrático."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63338642