A praça Marcos Santos Silva fica na Cohab Raposo Tavares, extremo oeste de São Paulo. A cidade de Osasco e o Rodoanel Mario Covas são vizinhos. Às cinco horas da manhã, cerca de cem pessoas se dividem em filas das linhas que vão para a Lapa, Terminal Princesa Isabel e Barra Funda. Galos ainda cantam, mas o clima não é nada bucólico.
- • Esta é a segunda matéria da série de reportagem Votos Invisíveis, que dá voz aos eleitores paulistanos que vivem longe dos grandes centros e sem acesso a direitos básicos, como saneamento, educação de qualidade e transporte.
Vemos caras fechadas, de quem acordou cedo e vai enfrentar uma longa viagem, que sai lotada. Nem todas as pessoas que embarcam conseguem sentar, embora tenham chegado cedo para evitar a viagem em pé.
Alguns ônibus dão uma volta no bairro Santa Maria, de Osasco, e passam novamente pela praça, ainda mais cheios. "Vai igual sardinha em lata, você não vê nem o motorista", diz Pedro Alcântara Nunes dos Santos, segurança.
O tempo de espera nos ônibus e terminais vem aumentando. Na zona oeste é de 21 minutos, segundo pesquisa publicada em agosto pela Rede Nossa São Paulo. O tempo médio de deslocamento aumentou 20 minutos na região, enquanto diminuiu 42 na zona leste.
Tatiane Pedroso, 38 anos, tem que embarcar até 6h30 para conseguir chegar no trabalho às 8 horas. “Ninguém vem aqui ver, mas tem que falar. O ônibus que eu pego para a Lapa não tem ar-condicionado. Falei para o motorista, vai ter gente se matando”, diz a passageira.
Embarcando para a Barra Funda
Pela manhã, 32 ônibus saem da praça na Cohab Raposo Tavares. São veículos para 37 pessoas sentadas. A placa informa que cabe mais gente em pé, 39. Serão muitos mais, conforme constatou a reportagem, que embarcou às 6h20 na linha que leva ao terminal Barra Funda (778J-41).
Ivanilda Soares da Costa, 51 anos, costureira, consegue sentar. “Eu chegava sempre antes no trabalho, agora só chego em cima da hora”. No terceiro ponto, não cabe mais ninguém, nem em pé.
A costureira utiliza os ônibus que saem da Cohab Raposo há mais de 30 anos. Ela observa que “vai todo mundo calado. Ninguém reclama mais, o povo está anestesiado”.
Segundo a pesquisa da Rede Nossa São Paulo, na zona oeste o principal problema apontado por 42% dos usuários é a baixa frequência de ônibus. Outros 17% reclamam da pontualidade e, em terceiro lugar, estão as reclamações sobre a lotação, com 15%.
Meia hora na rodovia Raposo Tavares
O ônibus leva vinte minutos para chegar à rodovia Raposo Tavares e encontrar mais um problema, o trânsito. A costureira desembarca pela frente, impossível atravessar o ônibus. Só na parte da frente, antes da catraca, dezesseis pessoas se espremem em pé.
Rejane Maria da Conceição Silva, diarista, senta no lugar da costureira que desembarcou. Ela vem de Cotia e está pegando seu segundo ônibus. Vai levar mais de três horas para chegar ao trabalho, o mesmo tempo para voltar.
“Pego ônibus desde os quatorze anos de idade. Cada dia, vai piorando”, diz a diarista. Ela acorda às quatro da manhã. “Queria que tivesse mais ônibus articulado, cabe mais gente e tem ar-condicionado”. São 7 horas e o relógio da rodovia informa 26 graus de temperatura. Entram duas mulheres, pedem para abrir a janela.
Uma delas é Maria Clenilda de Souza, que traz, dormindo, a filha de cinco anos. Ela mostra o condomínio que está sendo construído do outro lado da Raposo Tavares, onde viverão seis mil pessoas, que precisarão de ônibus.
Segundo a pesquisa da Rede Nossa São Paulo, o ônibus municipal é o meio de transporte usado com maior frequência pela população paulistana, e vem aumentando. Quase todos os usuários são das classes D e E.
Será que vão colocar mais ônibus? Porque na volta é pior, isso quando não tem jogo no Morumbi, aí fica impossível -- Maria Clenilda de Souza, diarista
Linha transporta mais de 5 mil pessoas diariamente
Com todo mundo espremido, é inevitável: quem está ao redor, acaba participando da reportagem. É difícil mover os braços para anotar. Mas ouvimos relatos de brigas, roubos, assédio. Ao que parece, os cobradores e, principalmente, os motoristas, são peças-chave no agravamento ou na resolução de conflitos.
Os funcionários podem ter boa vontade de girar a catraca e abrir a porta da frente, facilitando o desembarque. Podem intervir em brigas ou assédios, pedir para cederem lugar a idosos e gestantes. Também podem manter a porta fechada, não se envolver em problemas e, em alguns casos, passar sem parar nos pontos.
Solange Lopes de Oliveira conta que, dias atrás, pediu para alguém segurar sua bolsa, gesto comum no transporte público de São Paulo. Quando saiu do ônibus, percebeu que seu Bilhete Único havia sido roubado. “Só não roubou o celular porque não ando com ele no ônibus”, explica.
Segundo o último dado disponível na SPTrans, esta linha transportou 5.271 pessoas no dia 9 de agosto. A empresa responsável, Transppass, foi contactada por telefone e e-mail, mas não respondeu à reportagem.
No metrô Butantã descem passageiros, mas sobem outros
Às 7h25, o ônibus chega ao metrô Butantã. Muita gente desce, parece que vai aliviar, mas outros passageiros embarcam. Diminui a lotação, mas todos os assentos estão ocupados e ainda tem gente em pé.
Enquanto o ônibus atravessa o bairro de Pinheiros, pergunto à diarista Maria Clenilda de Souza se, fora do horário de pico, a viagem é mais rápida. “Que nada, menino, tem um monte de caminhão descarregando carga no corredor de ônibus da rua Teodoro Sampaio, tem muito comércio”.
Ela faz uma reclamação que ouvimos de várias pessoas: depois da pandemia, o transporte piorou. Reclamam que linhas retiradas não voltaram. Sua filha ainda dorme. Maria a deixará na creche, pegará outro ônibus para chegar ao trabalho e, no final tarde, perderá mais tempo no caminho de volta. “Se eu for falar tudo, saio daqui presa”, brinca.
A concessionária Transppass foi notificada pela SPTrans sobre a operação das linhas citadas nesta reportagem. Houve descumprimento de partidas nas últimas duas semanas. A SPTrans diz também que irá intensificar o acompanhamento presencial da operação.
Região da Barra Funda
Chegando perto do terminal Barra Funda, o termômetro marca 30 graus. Mesmo no calor, vários passageiros dormem. Acordaram cedo e aproveitam o tempo de viagem para completar o sono.
Estamos passando perto do estádio Allianz Parque. Quem está acordado diz que, em dias de jogos e shows, o trânsito atrasa ainda mais a viagem de volta para casa. Segundo relatos, show é pior do que jogo. Citam as apresentações de RBD e Shakira.
Às 18h12, o ônibus chega ao terminal Barra Funda. Sem ar-condicionado e com o ventilador do motorista quebrado, o termômetro do relógio de trânsito marca 32 graus. A viagem demorou 110 minutos, quase duas horas.
Faço a última pergunta à diarista e à babá com quem viemos conversando: quem for eleito para a Prefeitura de São Paulo pode melhorar a situação do transporte de ônibus? Elas não acreditam. A babá só vota porque sua filha mora no exterior e ela precisa da documentação em dia para tirar passaporte.
Conta que seu marido “não vota de jeito nenhum”. A diarista Maria Clenilda de Souza vota, mas por obrigação, para não ter que ir ao cartório regularizar o título eleitoral. “Teria que ir de ônibus”, ironiza.