O pré-candidato do Psol à Presidência da República, Guilherme Boulos, de 35 anos, tem se destacado, ao lado de outras lideranças, por defender a libertação de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), preso desde 7 de abril na Superintendência da Polícia Federal (PF), em Curitiba. Mas se engana quem pensa que o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) quer simplesmente disputar o legado do lulismo. Segundo ele, a união da esquerda é uma exigência do momento político, e não tem qualquer ligação com o pleito de outubro.
Em entrevista ao portal Terra, concedida pouco antes de participar, na terça-feira (1º), do ato unificado do Dia do Trabalhador, na capital paranaense, Boulos também rejeitou a política de coalizão adotada pela maioria dos partidos brasileiros e disse ser preciso construir um novo modelo de governabilidade. Propôs, ainda, a regulação do sistema bancário, a adoção de uma reforma trabalhista que privilegie os mais pobres e a realização de referendos e plebiscitos como forma de estender a democracia para além das eleições.
Terra - Você não é um quadro histórico do Psol. Filiou-se há pouco tempo. Como foi esse processo de decisão da sua candidatura?
Boulos - A nossa relação com o Psol não vem de hoje. Nós fomos construindo uma aliança e uma identidade nos últimos anos, nas lutas e nas ruas, em posições comuns do MTST e da Frente Povo sem Medo. Foi o que aconteceu, por exemplo, no momento do golpe parlamentar. Tanto o MTST como o Psol não faziam parte do governo Dilma [Rousseff, do PT]. Aliás, nós criticávamos posições do governo, como botar o Joaquim Levy no Ministério da Fazenda e fazer política de ajuste fiscal. Mas isso não nos impediu de estar na linha de frente contra o golpe, por entender o que estava em curso. Era essa tragédia do [Michel] Temer (MDB-SP - antigo PMDB) que vinha. A mesma coisa agora em relação à prisão do Lula. Nós temos candidatura própria. Temos diferenças em relação a posições políticas com o Lula. Mas isso não nos impede de entender que a prisão dele é uma injustiça, um absurdo e um ataque à democracia. Houve vários encontros do MTST com o Psol e com um conjunto de movimentos sociais, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que foram dando base para que a gente construísse uma aliança. Eu componho chapa com a Sônia Guajajara, que é a maior liderança indígena do País. É a primeira indígena a estar numa chapa presidencial na história do Brasil. E também com o Mídia Ninja e uma série de movimentos, juventude, setores do movimento negro, LGBT [de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais], movimento feminista. A aliança que estamos fazendo não é pautada por tempo de televisão ou acordos em sala fechada. Queremos apresentar um projeto não apenas para outubro deste ano. Claro que queremos ganhar. A nossa candidatura é para valer. Não é para marcar posição. Mas não vamos nos limitar ao projeto para a próxima eleição. Queremos apresentar um projeto para a próxima geração,de futuro, uma nova forma de fazer política, enfrentando os privilégios do 1%, que há 500 anos mandam por aqui.
Terra - Hoje esses movimentos e os partidos de esquerda estão muito concentrados na libertação do ex-presidente Lula. Isso não pode atrapalhar as candidaturas próprias?
Boulos - Eu estou fazendo agendas no País inteiro para apresentar o nosso projeto. Agora, nenhuma candidatura se sustenta se não tiver o mínimo de ambiente democrático. A luta pela democracia não é contraditória à apresentação de um projeto. Ela é base para a apresentação de qualquer projeto. A prisão do Lula e a tentativa de impedi-lo de participar das eleições são sim um atentado à democracia. E por isso essa não é apenas uma questão do PT ou de quem vota no Lula. É uma questão de todos aqueles que entendem que, quando o Judiciário resolve fazer política, isso é muito grave para a sociedade – escolher quem deve participar de eleição, quem deve ser condenado e ao mesmo tempo proteger outros setores. Nós não vimos até aqui nenhum grande tucano ser preso pela Lava Jato. Não creio que seja porque não estão envolvidos no esquema. E ao mesmo tempo nós vimos uma prisão absolutamente sem provas do Lula. E quero ir mais longe. O ataque ao processo democrático no Brasil não se dá apenas com a prisão e a condenação do Lula; se dá com a escalada de violência política que matou a Marielle [Franco, vereadora do PSOL] no Rio de Janeiro, num crime bárbaro que vai completar dois meses e não tem nenhuma resposta. Foi um crime político contra uma mulher negra, vinda da favela, que representava vozes para as quais a política em geral é fechada. Essa escalada de violência se expressa nos tiros que nós vimos há poucos dias em Curitiba contra o acampamento de defesa do Lula. E se expressa em cada declaração do [Jair] Bolsonaro [pré-candidato à Presidência pelo PSL], estimulando o ódio, a violência e a intolerância no Brasil e rebaixando o debate político.
Terra - Muito se fala na união das esquerdas, retomada por conta da conjuntura. É possível que essa união, apesar da existência das candidaturas próprias, se dê também nas eleições?
Boulos - A união que está colocada nesse momento é uma união democrática. São setores que entendem a gravidade do que está acontecendo e por isso acham necessário estar juntos. A esquerda precisa ter essa maturidade, de estar junto naquilo que é fundamental, por interesses maiores, mas também precisa ter a mesma maturidade de não ceder ao pensamento único. Existem diversidades de ponto de vista e de projetos. Elas não podem ser jogadas para debaixo do tapete. Essas diferenças precisam aparecer e o processo eleitoral é uma oportunidade para isso. Nenhuma unidade pode ser forjada ou imposta.
Terra - Existe do outro lado uma direita e uma extrema-direita cada vez mais fortes, com a pré-candidatura do Bolsonaro. Enquanto a esquerda está defendendo a liberação do Lula, esses grupos não estariam à frente, pensando em eleição?
Boulos - Não é verdade que a direita esteja unida. A direita está mais pulverizada do que nunca. Existem mais de dez candidaturas da direita colocadas no tabuleiro eleitoral hoje. O Bolsonaro, aliás, não é a candidatura oficial do establishment. Pode até vir a ser, mas hoje não é. Essa gente aposta sobretudo no Geraldo Alckmin (PSDB-SP). Segundo: a eleição é em dois turnos. Não me parece razoável supor que os brasileiros levem ao segundo turno duas candidatura que de um modo ou de outro representem o governo mais rejeitado da história republicana. Das candidaturas da direita algumas são Temer assumido e outras são Temer disfarçado. Mas todas defendem o projeto do Temer. O economista do Bolsonaro esses dias disse que tinha que privatizar tudo, que é exatamente a mesma receita neoliberal que o Temer está aplicando. O Alckmin falou em privatização da Petrobras. Todos eles defendem o ajuste fiscal. Ou seja, retirada de direitos, com reforma trabalhista e reforma da previdência. O povo brasileiro rejeita isso com 96%, que é a rejeição ao governo Temer. E terceiro: não estamos falando apenas da defesa do Lula, embora esta seja uma questão fundamental. Nós estamos apresentando projeto para o Brasil, debatendo em praças e ruas. Esses dias eu estive em Belo Horizonte com mais de 700 jovens na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Nós temos feito propostas de campanha, levado adiante a necessidade de um plebiscito para revogar as medidas tomadas pelo Temer; de uma reforma tributária progressiva, para que rico comece a pagar imposto no Brasil e se possa financiar a geração de empregos e a recuperação de serviços públicos; e a necessidade de uma profunda reforma política, com a democratização do Estado, que assegure governabilidade não mais por balcão de negócios ou compra de apoio parlamentar por cargos. Queremos debater com o senhor Bolsonaro segurança pública. É muito fácil ficar defendendo armamento da população, que não funcionou em lugar nenhum, com um populismo da violência, e não apresentar proposta concreta. Em última instância, o modelo que o Bolsonaro defende é esse, fazer mais do mesmo, que é um modelo que faliu. O modelo de segurança pública no Brasil é caro, violento e ineficaz. E o que estão propondo é mais disso. Queremos fazer o debate do ciclo completo de desmilitarização das polícias, do tema da população carcerária no Brasil, de rever determinadas legislações penais. Queremos fazer um debate sério, porque o Bolsonaro só grita. Está há 30 anos no Parlamento e que projeto de interesse nacional aprovou até hoje? É o cara que representa ideias atrasadas, nunca fez nada pela sociedade brasileira e tem a cara de pau de se apresentar como novidade. Queremos nesse processo ter a oportunidade de debater com ele não no grito, não na intolerância, que é o campo dele, e sim no campo das propostas.
Terra - Mas as pessoas veem essa ligação tão forte dele com o governo Temer? O governo Temer tem uma rejeição grande e o Bolsonaro, por outro lado, está bem colocado nas pesquisas...
Boulos - Você tem razão. Boa parte das pessoas não vê essa ligação, muito embora até outro dia o Bolsonaro fosse do PP, que é base de apoio do Temer, e seus economistas defendam a mesma receita aplicada pelo Temer. Um dos desafios do processo eleitoral é mostrar essa identidade e essa ligação não só do Bolsonaro, mas da maioria dos candidatos da direita. Agora, o crescimento do Bolsonaro nós precisamos entender de onde vem. Vivemos um momento de uma crise econômica, política, ética, um momento de desesperança na sociedade brasileira, em que as pessoas estão inseguras e é difícil ter perspectiva de futuro. Ele se utiliza do medo gerado por essa sensação de insegurança para apresentar alternativas de ódio, intolerância, agressão e violência. E as pessoas fragilizadas muitas vezes se deixam levar por esse tipo de alternativa. Nós queremos dialogar com esse sentimento de outra maneira. É verdade que as pessoas estão descrentes da política, e é exatamente por isso que não podemos apresentar um modelo que seja essa mesma velha forma de fazer política. Se o Bolsonaro trabalha na lógica do medo, nós trabalhamos na lógica da construção de uma esperança de futuro, com participação popular e fazendo um debate que aprofunde o conceito de democracia. Vamos enfrentar efetivamente os privilégios. Não é a sociedade que tem de servir à economia. É a economia que tem de servir à sociedade. Isso significa financiar o Estado brasileiro com a tributação do 1%, que não paga nada; só leva. Quando nós formos capazes de fazer esse debate amplamente com a sociedade brasileira, nós vamos poder dialogar talvez com os mesmos sentimentos que o Bolsonaro dialoga, mas apontando alternativas para outro lado.
Terra - Há quem veja na sua candidatura semelhanças com o início da trajetória política do Lula. Os governos do PT, porém, também foram de coalizão. É possível chegar ao poder sem fazer alianças?
Boulos - Eu tenho respeito pelo Lula e nós somos solidários à situação que ele está passando hoje. Isso também nunca nos impediu de ter criticas às experiências de governo do PT. É verdade que houve avanços do ponto de vista de políticas sociais e investimentos públicos, mas também é verdade que houve muitos limites, de não ter enfrentado a estrutura de privilégios do Estado brasileiro, não ter feito reforma política, não ter pautado a democratização das comunicações, nem feito uma reforma tributária progressiva ou regulado o sistema bancário, que é uma verdadeira farra no Brasil. Hoje de algum modo a gente paga o preço desse enfrentamento não ter sido feito.
Nós somos aqueles que não estiveram no momento da distribuição do poder nos 13 anos de governo do PT, mas que estavam no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) no momento da solidariedade, enquanto outros, muitos, só estiveram no momento da distribuição do poder. Isso expressa a esquerda que nós somos, uma esquerda solidária, que tem grandeza, que dialoga amplamente, mas que tem posições firmes, que tem lado e não abre mão dessas posições. Eu não acredito que, para chegar ao governo, tenha que se abrir mão de posições, principalmente porque esse sistema político está absolutamente falido e desmoralizado. O modelo de governabilidade que nos últimos 30 anos vigorou no Brasil foi o modelo de composição, em que um Parlamento é quase sempre comandado por oligarquias locais, por máfias e grupos de interesses - bancada da bala, bancada do boi, da construção, dos bancos, dos planos de saúde. Financiam-se campanhas eleitorais, elegem representantes e os parlamentares não representam seus eleitores. Representam seus financiadores. O Brasil se tornou ingovernável sob essa lógica, ainda mais se a nossa perspectiva é uma perspectiva de transformação. Precisamos virar essa mesa e construir um novo modelo, que conte com a participação das pessoas. Não é demagogia. É com plebiscitos, conselhos, como acontece em vários países do mundo, não só países bolivarianos ou latino-americanos. A Suíça faz dez plebiscitos por ano. Para nós só faz sentido disputar e governar se for, pela primeira vez na história da Nova República, depois de 30 anos, para colocar o MDB na oposição. Porque o MDB entra governo e sai governo está ali chantageando a todos e dando as cartas, sem nunca ter eleito um presidente da República.
Terra - Há, porém, o exemplo recente da Dilma, que sofreu impeachment quando perdeu a maioria no Congresso...
Boulos - A Dilma foi derrubada por um golpe parlamentar, porque forças ligadas ao [ex-presidente da Câmara] Eduardo Cunha (MDB-RJ) se articularam no Parlamento para retirá-la, em conjunto com o Michel Temer. A Dilma não foi derrubada por ter enfrentado em seu governo grandes interesses. Quando ela foi derrubada, pouco antes, não vamos esquecer que o ministro da Fazenda era o Joaquim Levy, do Bradesco, que estava fazendo ajuste fiscal. Talvez – claro que especular sobre o passado é sempre arriscado - o fato de ter adotado políticas que não foram as políticas com as quais ela se elegeu que tirou o lastro social dela e uma base que a defenderia com muito mais força e muito mais gana. Aqui estamos falando de um processo de enfrentamento a privilégios. É possível que isso não tenha sustentação imediata no Parlamento? É possível. Mas é possível também, pela mobilização da sociedade, construir condições para que o Parlamento seja sensibilizado. Ninguém abre mão dos seus próprios privilégios de bom grado. Agora, quando a sociedade se mobiliza e pressiona, isso faz com que muitas vezes o Parlamento ou os governos façam aquilo que não fariam de outra forma. Aliás, essa é a história das mudanças no Brasil e no mundo. Como acabou a Ditadura Militar? Reuniram um conselho de generais, que resolveram que era o momento de dar fim? Não. Milhões de pessoas foram às ruas exigindo Diretas já. Não foi pelo Congresso, pelo Supremo ou pelos militares. Como as mulheres conseguiram direito ao voto? Pedindo por favor aos homens? Não. Foi por mobilizações no mundo inteiro. A conquista do aprofundamento democrático no Brasil se dá dessa maneira também. É nisso que nós acreditamos.