Estudo revela disparidades entre países no uso de IA em documentos de políticas públicas

Dados do estudo revelam uma realidade que não é difícil de entender: a IA está cada vez mais presente em todos os setores da sociedade, e discutir suas implicações éticas, sociais e existenciais é inevitável

7 jan 2025 - 08h18

A inteligência artificial (IA) é um campo de estudo que combina ciência da computação, matemática e filosofia, discutido por cientistas e pensadores desde a segunda metade do século XX. No entanto, foi a partir da década de 1990 que avanços na capacidade de processamento e armazenamento de dados permitiram o desenvolvimento de sistemas eficientes, capazes de integrar modelos de linguagem e resolver problemas de forma autônoma.

Com esses avanços, tecnologias ligadas à IA, como aprendizado de máquina, redes neurais e ferramentas para entender a linguagem humana se tornaram mais comuns - e capazes de processar uma quantidade cada vez maior de dados. Isso levou à criação de programas como o ChatGPT, que colocaram a inteligência artificial no centro das discussões globais. Essas tecnologias estão transformando nossa vida em várias áreas, como saúde, ciência e, mais recentemente, políticas públicas.

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Em março de 2017, o Canadá foi pioneiro ao lançar uma estratégia nacional para o uso da IA. Desde então, 62 países, incluindo o Brasil, começaram a debater e implementar seus próprios planos. No caso brasileiro, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024-2028 prevê um investimento de R$ 23 bilhões na área, com foco em projetos que tragam impacto nas áreas de saúde, agricultura, comércio e serviços e gestão do serviço público.

O Brasil acompanha uma tendência internacional, em que o tema da IA em documentos de políticas de diversas áreas, como documentos legais, relatórios e protocolos clínicos, tem crescido. Pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre a Organização da Pesquisa e da Inovação da Universidade Estadual de Campinas (LabGEOPI-Unicamp) utilizaram a plataforma Overton, um dos maiores repositórios globais de documentos de políticas públicas, para analisar não só como a inteligência artificial tem sido abordada em políticas ao redor do mundo, mas também como a ciência é integrada na formulação dessas políticas.

A plataforma reúne informações de milhares de instituições em centenas de países, incluindo governos, organizações internacionais, think tanks e outras entidades. O estudo mostrou que o uso da inteligência artificial em documentos de políticas tem crescido desde 2015, com os países do Norte Global liderando essa tendência.

Publicado na revista acadêmica Science and Public Policy, a pesquisa identificou 3.133 documentos de políticas provenientes de 59 países. O primeiro ponto destacado pelos pesquisadores foi a evolução no número desses documentos ao longo do tempo. A partir de 2015, houve um salto significativo: de apenas 3 registros em 2014, o número subiu para 15 em 2015 e cresceu de forma acelerada nos anos seguintes, com 82 documentos em 2016, 156 em 2017, 377 em 2018, até alcançar o pico em 2021, quando foram identificados 721 documentos relacionados à inteligência artificial.

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No entanto, a partir de 2022, o número de publicações começou a diminuir: foram 544 documentos em 2022 e 237 em 2023. Embora ainda seja cedo para afirmar qualquer coisa com convicção, esse declínio pode indicar que estamos entrando em uma fase de consolidação das principais iniciativas de políticas, com maior foco na produção de documentos mais diretos e objetivos.

O segundo ponto destacado no estudo trata de quem lidera o uso de inteligência artificial em documentos de políticas públicas. Os Estados Unidos aparecem no topo, com 793 documentos publicados. Em seguida, vem a União Europeia, com 681 publicações. Outro destaque são as organizações intergovernamentais, que respondem por 424 documentos, sinalizando a importância da cooperação internacional nesse campo.

O terceiro ponto abordado no estudo refere-se ao papel das referências citadas nesses documentos de política, que ajudam a entender como a ciência contribui para a formulação dessas políticas. Os pesquisadores analisaram 17.835 artigos mencionados nos documentos, e identificaram a predominância de países do Norte Global na produção de artigos citados, com os Estados Unidos liderando com 5.706 referências, seguidos por Reino Unido (1.967) e Alemanha (953).

Em contraste, países do Sul Global, como o Brasil, aparecem de forma marginal nesse cenário, com apenas 152 referências. Essa disparidade deve-se, em parte, ao fato da base Overton ter mais documentos de países desenvolvidos e em inglês. Mas pode apontar, também, para um um desequilíbrio geográfico no uso de conhecimento científico, levantando questões sobre a inclusão e representatividade no desenvolvimento de políticas globais.

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A análise mostra que as referências citadas em documentos de políticas públicas não apenas servem como fonte de evidências, mas também refletem as prioridades, os valores e as lacunas do sistema de governança global. Esse mapeamento ajuda a entender como a ciência pode apoiar decisões mais inclusivas e informadas, particularmente em um campo tão dinâmico quanto a inteligência artificial.

Os dados revelam, principalmente, uma realidade que não é difícil de entender: a inteligência artificial está se tornando cada vez mais presente em todos os setores da sociedade, e discutir suas implicações éticas, sociais e existenciais já é uma questão inevitável. Além disso, as evidências indicam uma sub-representação de países do Sul Global nesse processo, o que levanta questões sobre como as pesquisas têm influenciado as políticas públicas nesses países.

Por fim, é fundamental questionar como a agenda de pesquisa sobre inteligência artificial tem integrado questões sociais relevantes e como os responsáveis pela elaboração de políticas públicas têm se mantido atualizados sobre os avanços técnicos na área, para criar legislações e regulamentações eficazes, à altura dos desafios impostos pela nova era.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Sergio Salles-Filho recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, processo 2021/15091-8

Bernardo Cabral e Mariana Ceci não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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