França em crise: Macron e o retorno da extrema direita

Apesar da vitória do bloco de esquerda nas eleições parlamentares, Macron tomou uma decisão controversa e sem precedentes: escolheu um representante da direita dura para ser seu primeiro-ministro, provocando inquietação.

6 set 2024 - 12h41
(atualizado em 12/9/2024 às 12h14)

Após quase dois meses das eleições legislativas e o término de uma Olimpíada mundialmente transmitida, o presidente francês Emmanuel Macron finalmente nomeou seu primeiro-ministro. Apesar da vitória do bloco de esquerda nas eleições parlamentares, Macron tomou uma decisão controversa e sem precedentes: escolheu um representante da direita dura. Pior ainda, alguns analistas sugerem que isso ocorreu após um acordo com a extrema direita, o que provoca inquietação no cenário político francês.

Macron, que ganhou notoriedade durante o governo socialista de François Hollande, tinha a opção pragmática de escolher o seu próprio ex-presidente como primeiro-ministro (a relação entre os dois parece não ser a melhor). No entanto, optou por um movimento mais à direita, buscando apoio de setores mais conservadores, desafiando não só os partidos de esquerda vencedores das eleições legislativas, mas também o próprio parlamento, onde seu partido não tem maioria. Assim, para governar, Macron deverá contar com o apoio da extrema direita e de um primeiro-ministro alinhado à direita radical.

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A Coabitação e a Crise Política

A coabitação, um mecanismo político francês, permite que um presidente divida o poder com um primeiro-ministro de outro partido, podendo ser da oposição. Não é uma situação simples, mas já ocorreu em três ocasiões: 1986-1988, 1993-1995 e 1997-2002.

Atualmente, o grupo político de Macron foi derrotado no legislativo por uma aliança de esquerda, formada para conter o crescimento da extrema-direita, já evidenciado nas eleições para o Parlamento Europeu. Diante desse crescimento da extrema direita, a esquerda indicou votos em candidatos de Macron, na esperança que pudessem bloquear esse movimento político.

Desde a Segunda Guerra Mundial, a extrema-direita não esteve no poder na França. No entanto, o medo de seu crescimento mobilizou o eleitorado a apoiar tanto a esquerda quanto setores moderados da direita. Porém, a surpresa veio quando, após dois meses de incertezas, Macron anunciou a nomeação de um primeiro-ministro da direita dura.

Essa nomeação ainda depende de aprovação na Assembleia Legislativa, onde a maioria relativa da esquerda pode representar um obstáculo. No entanto, se a extrema-direita apoiar a proposta, o nome será aceito, o que gera questionamentos sobre as promessas de campanha de Macron, que sempre se colocou como uma barreira contra o avanço da extrema direita, e sobre a validade da orientação de votos em candidatos de Macron contra a extrema direita.

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Traição ou Estratégia?

A nomeação gerou reações imediatas. Alguns consideram uma traição aos eleitores que acreditaram em Macron como um baluarte contra o radicalismo de direita. Desta vez, a política não foi feita à sombra da maioria silenciosa, mas ao preço de uma maioria voluntariamente silenciada. Mas a questão que permanece é: quem foi realmente traído? A esquerda ou os eleitores de Macron?

A narrativa de que "esquerda e direita não existem mais" ou de que "extremos são iguais" parece mascarar uma estratégia de poder que, no fundo, normaliza ideologias de extrema-direita. Essa normalização pode ser vista em discursos e atitudes que, embora se originem em líderes de esquerda ou centro, compartilham pontos comuns com a retórica conservadora.

O sociólogo Daniel Bell, em 1960, proclamou o "Fim das Ideologias". Talvez sua obra deva ser lida não como uma constatação, mas como um programa. O esvaziamento de ideologias e utopias, substituídas por slogans simplificadores, cria um vazio intelectual perigoso.

A desumanização promovida por uma estética niilista dificulta a formação de novos intelectuais e, como alertou Aimé Césaire, abre caminho para o fascismo. A Europa, mais uma vez, parece estar à beira de um abismo. As comparações com os anos 1930 têm se tornado comuns, e a questão que ressurge é: para Onde vai a França?

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A "Extrema Direitização do Mundo" e Suas Implicações Contemporâneas Quando tive o primeiro contato com o conceito de Bernard Stiegler de extrema direitização do mundo, confesso que não reconheci imediatamente os traços disso que ele chamou de revolução conservadora.

Algumas ideias apresentadas eram interessantes e relevantes, mas pareciam circunscritas ao contexto francês, principalmente quando o Brasil ainda vivia a felicidade dos primeiros governos de esquerda. A perspectiva oferecida por Stiegler sobre a "extrema direitização do mundo" não parecia se aplicar amplamente naqueles dias.

A história da extrema-direita na França é um fenômeno complexo com raízes que remontam ao final do século XIX. Desde o bolangismo e os movimentos de nostalgia monárquica, passando pelo caso Dreyfuss, a extrema-direita francesa tem se oposto aos valores republicanos da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.

Ela chega ao poder durante a Segunda Guerra Mundial, formando o regime de Vichy, sob o nome de Colaboracionismo. Nazismo vencido, colaboracionismo vencido. O grupo se encolhe e parece uma tristeza lembrança do pior momento do século XX durante trinta anos.

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Mas os fantasmas teimam em retornar. O crescimento da atual extrema-direita na França tornou-se mais visível a partir das décadas de 1970 e 1980, com o surgimento do Front National (FN) sob a liderança de Jean-Marie Le Pen.

Com apenas 1% de intenção de votos em 1981, ele consegue em 1986 sua entrada no legislativo - não parando mais de crescer. O partido, em 2002, alcançou o segundo turno das eleições presidenciais, enfrentando Jacques Chirac, deixando o grande nome da esquerda da época,Leonel Jospin, fora do segundo turno. Esta eleição marcou um ponto crítico, revelando a possibilidade da direita, através de Chirac, se representar como "barreira contra a extrema-direita" do Front Nacional de Le Pen. Essa foi a mesma abordagem que o atual presidente Emmanuel Macron empregou em suas duas últimas campanhas.

A Continuidade do Nazismo e o Neocolonialismo

E nós com isso? A extrema direita na França não é um fenômeno isolado - suas raízes estão ligadas a uma longa história de ideologias reacionárias. Um aspecto crucial da compreensão do nazismo, conforme argumenta Aimé Césaire em seu Discours sur le colonialisme, é que o nazismo deve ser visto como uma extensão das práticas coloniais do século XIX, aplicadas aos próprios europeus.

Essa perspectiva sugere que, embora o nazismo tenha sido derrotado como uma ideologia específica, a estrutura psicológica e ideológica associada à colonização continuou a existir. Césaire argumenta que o neocolonialismo é, em muitos aspectos, uma forma de nazismo que se manifesta fora da Europa, mantendo viva a ideologia extrema.

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A reflexão sobre a "extrema direitização do mundo" e suas implicações atuais nos leva a reconhecer que os desafios enfrentados pela França e pela Europa não são apenas o resultado de novas correntes ideológicas, mas também de uma continuidade histórica que remonta a práticas e ideologias anteriores.

Aimé Cesaire, Bernard Stiegler e Johan Chapoutot são teóricos que parecem convergir para essa conclusão. À medida que a extrema direita ganha terreno, é crucial compreender suas raízes históricas e suas conexões com o passado colonial e nazista.

Ela é cumplice de cada crime racial que ocorre no mundo. A morte de João Alberto Silveira Freitas, de Marielle Franco, de George Floyd, são ainda as mortes de Steve Biko, Vladimir Herzog, Osvaldão, Jean Moulin ou Jean Jaurès. È a morte das crianças da Candelária. É a morte cometida pelo processo de desumanização. O mesmo que, segundo Césaire, conduziu o mundo ao nazismo.

Talvez seja o momento do presidente Lula apagar as fotos dele com Macron de seu Instagram…

The Conversation
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Foto: The Conversation

Marcos Moreira não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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