Kit de joias guardado por 1 ano foi entregue a Bolsonaro 4 dias após agenda secreta

Encontro com então ministro de Minas e Energia consta em agenda confidencial; Sachsida comandava pasta onde kit ficou guardado

1 set 2023 - 05h00

O kit de joias Chopard que ficou guardado por um ano em um cofre no Ministério de Minas e Energia foi entregue ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) quatro dias após uma reunião com o então ministro da pasta, Adolfo Sachsida, e o ex-titular, almirante Bento Albuquerque. Os dois encontros reservados constam na “agenda confidencial” da Presidência, indicando que aconteceram na tarde de 25 de novembro do ano passado, no Palácio da Alvorada.

A entrega desse kit, avaliado em US$ 120 mil (cerca de R$ 600 mil), foi feita quatro dias após os registros desses encontros, em 29 de novembro. As joias foram recebidas por um funcionário às 15h50, no Palácio da Alvorada, como consta no formulário de recebimento de presentes para o presidente da República revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Nesse documento, há um questionamento sobre Bolsonaro ter visualizado o item; a resposta é “sim”.

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Agenda confidencial encontrada no e-mail de Mauro Cid indica reunião secreta com ministro Adolfo Sachsida quatro dias antes da entrega das joias.
Agenda confidencial encontrada no e-mail de Mauro Cid indica reunião secreta com ministro Adolfo Sachsida quatro dias antes da entrega das joias.
Foto: Reprodução

Ainda que a legislação exija transparência das agendas, há encontros que as autoridades omitem. No caso desses dois registros, apenas o de Albuquerque está também na agenda pública de Bolsonaro. O de Sachsida aparece apenas na “agenda confidencial” de Bolsonaro e não consta na agenda pública dele, nem na do então ministro.

A agenda pública fica disponível nos sites do governo. Já a “confidencial” era de acesso restrito, feita por assessores da Presidência destacados para essa função e compartilhadas internamente através de e-mail funcional. O material desta reportagem foi entregue à coluna por uma fonte, cuja identidade será preservada.

Os documentos apresentados nesta reportagem estão em trocas de e-mails oficiais de Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens e tenente-coronel do Exército está preso desde maio e é um dos pivôs dessa investigação. Diversos sigilos seus foram quebrados pela Polícia Federal (PF), com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro.

A coluna apurou que, naquela sexta-feira, 25 de novembro, tanto Bento Albuquerque quanto Adolfo Sachsida estavam em Brasília e se reuniram no Palácio do Itamaraty durante agendas sobre a hidrelétrica Itaipu Binacional, onde o almirante Albuquerque era conselheiro à época. O encontro aconteceu pela manhã, antes da reunião agendada no Alvorada. Não foram encontrados registros públicos de compromissos oficiais de ambos que conflitassem com o período da reunião agendada pela Presidência.

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Reunião Intermediária do Conselho de Administração Brasil da Itaipu Binacional, antes da agenda com Bolsonaro, na manhã de 25 de novembro. Da esquerda para direira, Sachsida é o primeiro, e Bento Albuquerque é o quarto.
Foto: Bernardo Spinelli/MRE

O conjunto da marca Chopard, citado pela PF como “kit rosê ", contém uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário árabe (‘masbaha’) e um relógio. O pacote foi recebido pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2021. O item foi trazido na mochila do almirante e não foi declarado à Receita Federal, o que, segundo o órgão, pode configurar violação da legislação aduaneira. A partir de então, o item ficou guardado por um ano dentro do Ministério de Minas e Energia até ser entregue a Bolsonaro em 29 de novembro de 2022.

As investigações sobre enriquecimento ilícito de Bolsonaro com a venda de presentes diplomáticos indicam que, um mês após serem entregues, essas joias foram levadas “de forma oculta” pela comitiva presidencial aos Estados Unidos e colocadas em um leilão. Em uma das conversas encontradas pela polícia, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid lamentou a outro assessor a entrega “só dá pena pq estamos falando de 120 mil dólares“ e riu.

Para a PF, mensagens como essa de Cid “evidenciam” um esquema de peculato [crime de apropriação de bens públicos] de desvio dos presentes recebidos por autoridades estrangeiras para venda e “enriquecimento ilícito do ex-presidente”. Em declarações à imprensa, todos os envolvidos já negaram envolvimento ilícito no caso.

As joias foram entregues ao Tribunal de Contas da União (TCU) antes de iniciarem as investigações pela PF após a revelação do escândalo pelo jornal O Estado de S. Paulo, em março deste ano. Na manhã desta quinta, 31, Bolsonaro, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e outros seis assessores prestaram depoimento simultâneo sobre o caso à PF.

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A informação de que as joias teriam ficado no cofre do Ministério de Minas e Energia por um ano foi divulgada pelo jornal O Globo. A justificativa, no entanto, levanta dúvidas da PF. Segundo uma reportagem do colunista do UOL Josias de Sousa, a suspeita é de que as joias foram entregues a Bolsonaro logo após a volta da viagem, em 2021. Nessa suspeita da PF, o ofício da entrega das joias em 2022 seria apenas um álibi para formalizar o ingresso do presente e a posterior incorporação dos itens ao patrimônio pessoal de Bolsonaro.

Bento Albuquerque foi ministro de Minas e Energia até maio de 2022, quando deixou a pasta. Ele já depôs sobre o caso e é investigado pela PF. O sucessor, Adolfo Sachsida, o substituiu até o final do mandato, em dezembro, e as informações públicas não dão conta de que ele seja investigado.

Kit de "joias rose" trazido por Bento Albuquerque da Arábia Saudita, que ficou guardado por um ano no Ministério de Minas e Energia até ser entregue a Bolsonaro.
Foto: Divulgação/Polícia Federal

Agenda secreta

Os registros dos encontros com Bolsonaro, dias antes da entrega das joias, aparecem na relação de e-mails trocados entre assessores da Presidência, em meio à caixa de mensagens de Mauro Cid.

O documento da “agenda confidencial” de Bolsonaro do dia 25 foi criado na véspera, às 13h57, pelo funcionário do gabinete-adjunto de Agenda da Presidência Jacilton Marqueiro Neves Negri, conforme indicam os dados do próprio documento. O próprio Negri enviou a agenda às 14h29 para 25 contatos entre ministro, secretário e assessores. Assim como ele, todos com e-mail funcional (@presidencia.gov.br).

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Nesta primeira versão, constava apenas a pernoite de Bolsonaro no Hotel de Trânsito de Oficiais da FAB, em Guaratinguetá/SP, às 20h. O documento foi atualizado e enviado à lista de e-mail às 11h51 do dia 25, por Hellen Hernandes dos Santos, do Gabinete-Adjunto de Agenda Presidencial, constando o encontro com Bento Albuquerque. Houve também a inserção de compromissos com o então ministro de Relações Exteriores, Carlos França (11h30 às 12h) e com o ex-líder de governo Ricardo Barros (PP-PR) (12h às 12h30).

A terceira versão do documento foi enviada às 12h49 daquela sexta, pela assessora especial do gabinete adjunto de Agenda, Naiara Araújo da Costa Veloso. Neste momento surge a agenda com Sachsida, destacada em amarelo.

Informações do documento indicam que a última alteração aconteceu às 14h39 do dia 25, feita por Hellen Hernandes dos Santos, do gabinete-adjunto de Agenda. No minuto seguinte, a agenda confidencial foi disparada à lista de contato com a manutenção das agendas que já constavam e inserção de detalhes do deslocamento para Guaratinguetá.

Outro lado

A coluna tentou contato diversas vezes com Bento Albuquerque e Adolfo Sachsida por telefone na quarta, 30, e na quinta, 31, para comentarem sobre as reuniões com Bolsonaro e o caso das joias. Não houve retorno. Desde que o caso veio à tona, ambos disseram não ter cometido qualquer irregularidade. Bento Albuquerque chegou a dizer ao Estadão que as joias eram presentes dos sauditas a Bolsonaro e a Michelle; depois, em depoimento à PF, disse que eram presentes para o Estado brasileiro.

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Quando o caso veio à tona, Sachsida dizia a pessoas próximas, segundo relato do jornal O Globo, que desconhecia a existência das joias e que este era “um problema do seu antecessor”.

O ex-presidente Bolsonaro foi procurado por meio de sua assessoria no final da tarde de quinta e não respondeu aos questionamentos. O espaço está aberto para manifestação de todos os citados.

Fonte: Guilherme Mazieiro Guilherme Mazieiro é repórter e cobre política em Brasília (DF). Já trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, EPTV/Globo Campinas, UOL e The Intercept Brasil. Formado em jornalismo na Puc-Campinas, com especialização em Gestão Pública e Governo na Unicamp. As opiniões do colunista não representam a visão do Terra. 
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