"Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro”, essa frase é de Jair Bolsonaro (PL), mas antes de contextualizá-la, lanço um pequeno desafio para o leitor: quando ela foi dita?
No calor das revelações trazidas à luz pela Polícia Federal nesta quinta, 8, pode-se sugerir que a fala golpista foi encontrada em alguma conversa de Bolsonaro ou na reunião preparatória para “virar a mesa” que fez em julho de 2022. Nada disso. A fala foi dita em 1999, em uma entrevista à Band.
De quebra, na sequência, completou dizendo que tinha que fazer “um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com FHC [então presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB)], não deixando ir para fora, não. Matando! Se vai (sic) morrer alguns inocentes, tudo bem”.
O que aconteceu com Bolsonaro após essa fala? Nada, seguiu como deputado. E após dizer que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não merecia? Este processo foi arquivado em 2023. E quando disse que quem tomasse vacina viraria jacaré? E quando falou em fuzilar a petralhada? Bolsonaro nunca enganou ninguém sobre o que pensa e isso é tão grave quanto a impunidade.
No livro de memórias do ex-presidente FHC, Diários da Presidência 1995-1996 (Companhia das Letras), o tucano escreveu que Luiz Carlos Bresser-Pereira, então Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado “foi profundamente ofendido por um tal de [Jair] Bolsonaro, que, segundo me dizem, foi capitão e é deputado. Isso não é aceitável. Já disse de forma muito enérgica que não posso concordar. Pedi aos líderes, na reunião que tivemos ontem no ministério, que levassem adiante o processo de cassação dele por falta de decoro, porque acho que o governo tem que reagir a este tipo de ação” (páginas 106 e 107).
Bem, sabemos que o tal deputado não foi cassado pelos pares políticos e nem muito incomodado.
O capitão entrou na política depois de ter sido preso e chutado para fora do Exército no final dos anos 1980 por fazer campanha pelo aumento dos rendimentos e supostamente planejar estourar uma bomba no quartel. Na prática ele foi para reserva, mas politicamente era o espanta roda dos comandantes e oficiais, e foi assim até a campanha de 2018, quando arranjou um general para ser seu vice.
Bolsonaro sempre foi um parlamentar do “baixo clero, escrotizado (sic) dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma p*rra de um deputado”. Ainda que a gente possa pensar isso, quem fez essa avaliação foi o próprio Bolsonaro no vídeo da reunião de julho de 2022 - esse que a Polícia Federal trouxe à tona e foi tornado público pelo STF nesta sexta, 9.
Nessa toada de baixo calão, o militar fez a vida (dele e dos filhos) e se elegeu presidente. Quase conquistou o segundo mandato presidencial, aflorou o radicalismo em milhões de corações e, como investiga a PF, foi uma das peças centrais na articulação de um golpe de Estado. Ninguém deveria se surpreender.
A diferença é que agora, parece que estamos diante de um processo jurídico que pode fazê-lo pagar por crimes feitos à época da Presidência. Talvez daí venha o espanto do capitão, que disse à CNN que ficou “surpreso” com a operação que apreendeu seu passaporte.
É de se imaginar que seja legítima a surpresa, afinal, passou 30 anos falando e fazendo o que quis sem ser incomodado. Ou melhor, sendo estimulado com eleições sucessivas: venceu 9 pleitos seguidos (de vereador em 1988, sete como deputado e uma como presidente). A única derrota que teve, para Lula (PT), em 2022, deu no que deu. Mas dessa vez, a conta chegou.
Bom Carnaval!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos.