Opinião: Como Lula 'isentão' abandonou a pauta da esquerda

O presidente não pode negar ao país uma discussão histórica, como a da Ditadura Militar, porque isso relembra seus sofrimentos pessoais

1 mar 2024 - 13h26
 Lula durante Chegada a Kingstown
Lula durante Chegada a Kingstown
Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Não se debruçar sobre a Ditadura Militar porque é “coisa do passado”, apoiar o fim das saidinhas de presos, fugir da discussão sobre aborto e liberação de drogas fazem parte do novo figurino de Lula (PT). Mais do que abrir mão de temas caros para sua base e que inflamam seus opositores, o presidente optou por barrar essas discussões. As mulheres que o digam, em 2023, perderam representatividade nos ministérios para quadros do centrão.

É ano eleitoral, e Lula prefere falar grosso e sem papas na língua quando o assunto é Venezuela, Hamas e Rússia. Assim que o petista tem alimentado o coração dos esquerdistas, mesmo que isso custe rusgas e tensões diplomáticas ao país.

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A base governista que já tinha votado pelo fim da saidinha, nesta semana corroborou a proposta de emenda à Constituição (PEC) que amplia as isenções para igrejas. Teve mais. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, recuou e suspendeu uma nota técnica que trata sobre aborto. O documento nada mais fazia do que reforçar o que está previsto em lei, sem criar nenhuma novidade ou estímulo ao aborto. Mas a rápida repercussão na oposição e em lideranças religiosas foi suficiente para melindrar o governo, que invalidou o documento.

Em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar, na RedeTV!, o presidente disse que não quer tratar da Ditadura Militar - período funesto da história que começou há exatos 60 anos, em 1964, e se estendeu por 21 anos.

“Eu fico pensando que, nesse tempo que teve o golpe militar, eu passava muita fome com a minha mãe e o irmão. Não quero ficar lembrando disso, não”, disse Lula, que inclusive, foi preso na ditadura pelas greves sindicais.

Um presidente não pode negar ao país uma discussão histórica porque isso relembra os sofrimentos pessoais que viveu. Postura diferente teve a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), também presa na ditadura - e pior, torturada - , que criou a Comissão Nacional da Verdade, em 2011. Em 2012, durante a instalação do órgão, Lula esteve presente e pode ouvir Dilma dizer que: "A ignorância sobre a história não pacifica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores".

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O posicionamento de Lula destoa de ministros como Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania. Almeida planeja ações para que o país “não se esqueça” dos anos de chumbo e aguarda que o Planalto autorize a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura.

Os militares, aliás, merecem destaque à parte. Na entrevista à RedeTV!, elogiou o ministro da Defesa, José Múcio. O mesmo ministro que relativizou a tentativa de golpe contra o país e o governo. Foi Múcio quem disse, em entrevista ao O Globo mês passado, que o que viu em 8/1 foi uma manifestação de “senhoras, crianças, rapazes, moças... Como se fosse um grande piquenique, um arrastão em direção à Praça dos Três Poderes. Foi um movimento de vândalos, financiados por empresários irresponsáveis”.

A fala está situada em um universo paralelo, muito distante da realidade que todos vimos e das informações contidas nas investigações da Polícia Federal. Aliás, Múcio mesmo pouco fez para punir militares. Ele e Lula abdicaram da responsabilidade, passada à PF e ao STF.

É verdade que Bolsonaro, quando presidente, não emplacou toda sua cartilha reacionária. A força política que o parlamento adquiriu nos últimos anos dificulta a aprovação de pautas que não sejam consensuadas entre as grandes bancadas. Mas Bolsonaro agiu onde pôde para inflamar a base: no Ministério da Educação, Direitos Humanos e liberou armas. Deu certo, como vimos na grande mobilização de domingo, 25.

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No Congresso, pautas ideológicas avançam se casadas com um “algo mais”, como benefícios setoriais. O marco temporal, patrocinado pela bancada ruralista e partidos de centro, é um exemplo. O projeto foi uma derrota para o governo Lula, que vetou o tema e empurrou a decisão para o STF.

A agenda legislativa de Lula foca na economia, programas sociais e pauta verde, sustentável. A disputa cultural foi abandonada e ganhou força nas discussões da extrema-direita.

Trago uma análise feita pelo ex-ministro José Dirceu, em janeiro. Condenado no Mensalão e na Lava Jato e fora do jogo político, o petista é saudado na esquerda por sua habilidade de análise e percepção das forças que influem na sociedade.

“Nesses anos, houve uma mudança social e cultural enorme. Por causa do fundamentalismo religioso, por causa da ocupação dos territórios por força dos partidos de direita. E nós recuamos. Vimos agora no primeiro de maio (de 2023). Não houve uma mobilização nacional”, disse ao programa petista POD13 Bahia.

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Lula, parece apostar que a melhora da economia resolverá a maior parte dos problemas e será suficiente. Não custa lembrar que os primeiros atos da queda de Dilma (e da esquerda) começaram em 2013, quando o país registrava o maior PIB per capita de sua história.

Bom final de semana!

Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos.

Fonte: Guilherme Mazieiro Guilherme Mazieiro é repórter e cobre política em Brasília (DF). Já trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, EPTV/Globo Campinas, UOL e The Intercept Brasil. Formado em jornalismo na Puc-Campinas, com especialização em Gestão Pública e Governo na Unicamp. As opiniões do colunista não representam a visão do Terra. 
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