“Quem não acredita em Deus não pode compreender como é que a senhora Bia Marinho pariu um filho desses. Porque ele, possivelmente, é o filho que toda mãe gostaria de ter, esperto, jeitoso, manhoso e muito inteligente”, assim o presidente Lula (PT) iniciou sua fala na noite desta quinta, 4, no evento que sancionou a lei o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura. A deferência é a Antonio Marinho, poeta pernambucano e mestre de cerimônias do evento.
O toque divino foi mais do que a força de expressão usada a torto e a direito no Brasil. O tom religioso foi adotado conscientemente pelo petista como uma das estratégias de comunicação para melhorar a popularidade do governo. A busca por “Deus” está alinhada à nova campanha publicitária “Fé no Brasil” - não precisa nem explicar, não é?
O aceno também é aos setores evangélicos. Essa camada da população (que nos últimos 30 anos passou de 6% para cerca de um terço da população, projeta o Censo) avalia bem mal o governo e se torna cada vez mais determinante nas eleições. Chama atenção a maneira que o governo Lula tenta se aproximar dos evangélicos. Esse papo de falar em Deus e fé como está sendo, logo de cara, parece ineficaz.
O evento que citei acima foi o último dos três atos e discursos que Lula fez ontem. Em todos trouxe Deus para o palco. Na primeira agenda, em Arcoverde (PE), para inaugurar uma estação elevatória de água - obra relacionada ao programa de transposição do São Francisco - Lula foi enfático. Começou perguntando para os apoiadores “vocês acreditam em Deus?” e “vocês acreditam em milagre?”.
O mandatário usou a ideia de Deus e milagre para falar da transposição do Rio São Francisco e das ações do governo. Disse que a eleição dele era outro “milagre”, que se deu pela “coragem e fé” da população que votou nele. A palavra “Deus” foi pronunciada 11 vezes, e “milagre” por 16 ocasiões.
Lula recorreu tanto a Deus que não se sabe se é por adoração ou desespero.
Nascido no agreste de Pernambuco, Garanhuns, o petista narrou sua história de vida. Contou como sobreviveu e fugiu da seca, ainda criança, com a mãe e os irmãos rumo ao Sudeste. A fala de Lula é forte e cria uma conexão direta com quem viveu e vive situações semelhantes. Ser um sobrevivente da fome, da seca e da miséria no Brasil, parece milagre mesmo.
Independentemente da história de vida de Lula, a referência divina lembrou a retórica de Jair Bolsonaro (PL). Acusado pela esquerda de se beneficiar da fé alheia, o ex-presidente também atribuía sua eleição a um “milagre” e “missão de Deus”.
A auxiliares, Lula diz que sua aposta principal está nos programas que chegam na ponta, independentemente da crença de quem for beneficiado. A ideia é que ações do governo como Pé de Meia, Minha Casa Minha Vida, Farmácia Popular e Bolsa Família chegam a todos os lares, assim como a melhora econômica, e que isso se refletirá em uma percepção positiva, de maneira pulverizada. As pesquisas mostram que não tem sido bem assim. A Genial/Quaest indica que a avaliação negativa do governo Lula cresceu 12 pontos entre os evangélicos.
A política se moldou ao cenário de crescimento dos evangélicos. Uns entenderam, outros não. O PT foi criado com apoio de setores da Igreja Católica resistentes à ditadura, comungavam de uma visão de mundo semelhante. Lula parece que ainda não entende o pluralismo que há entre os evangélicos e as diferentes visões de mundo, valores e práticas que têm.
O livro “O Povo de Deus” (Geração Editorial), do antropólogo Juliano Spyer, explica como setores da política, da academia, da imprensa e da classe média brasileira misturam ignorância com divisão de classe numa equação que resulta no preconceito tosco com os evangélicos. Para parte dos intelectuais e dos formadores de opinião, analisa Spyer, o cristianismo evangélico tem só dois perfis: ou o pobre fanático ou o rico manipulador de mentes. O discurso simplório de Lula parece se basear em uma dessas duas premissas falsas.
Já contei no Terra que a bancada evangélica se vê como uma trincheira na defesa de princípios contra o governo petista. Até aqui, o Planalto não fez nenhum gesto no sentido contrário. Falar a evangélicos não é citar a Bíblia e dar glória a Deus, a esquerda e Lula não conseguiram entender isso.
No encerramento da fala de quinta à noite, na agenda do programa de cultura, Lula contou que na saída de Arcoverde um apoiador o abordou com uma cruz nas mãos para agradecer. “Eu pensei que ele ia me dar, mas ele não queria dar a cruz, não. A cruz é dele, ele só queria mostrar o que ele fez. Eu já estava com a mão assim [estende o braço] e ele falou: ‘não, não, a cruz é minha’”, contou Lula arrancando gargalhadas do auditório.
Com muita delicadeza, este apoiador mostrou para o presidente que a fé não se entrega para a política de mão beijada. A peregrinação de Lula com os religiosos está longe do fim.
Bom final de semana!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos.