A reta final de mandato de Arthur Lira (PP-AL) como presidente da Câmara dos Deputados tem ares medievais. Ao mesmo tempo em que banca projetos econômicos importantes para o país e para o governo Lula (PT), como a regulamentação da reforma tributária e a taxação de compras internacionais até US$ 50, acelera outros fundamentalistas como o PL do Aborto.
Há uma ala reacionária fiel ao atraso na Câmara, eleita por vontade popular. Mostramos na coluna no Terra, que mesmo sob pressões, o PL do Aborto ganhou mais 25 signatários, totalizando 56. Isso é quase 11% dos 513 deputados. O tema do aborto entrou na pauta por pressão da Bancada Evangélica sobre Lira.
O grupo, conta com a promessa de Lira de que a votação será no segundo semestre. E usa a pauta como termômetro para saber quais correntes na Câmara apoiam o tema (e com qual entusiasmo). Isso ajuda a apurar a análise dos candidatos que topam bancar suas ideias e com isso articular a votação para presidência da Casa, em fevereiro de 2025. Na Bancada da Bíblia são 202 quadros e, ainda que nem sempre sejam unânimes, costumam ter peso nas votações.
No Planalto e no Congresso, o centro e suas vertentes à esquerda e à direita fogem do debate chamado “ideológico”, “cultural”, que na verdade é sobre direitos. No máximo se posicionam na hora do voto, em situações em que não há votação simbólica (aquela que ninguém precisa botar a cara).
O fiasco da atuação de Lula contra o projeto das “saidinhas dos presos” plantou uma percepção de que qualquer tema ideologicamente semelhante teria fácil aprovação e pegaria mal para o governo se posicionar de forma decente.
O erro da oposição e de Lira ao bancar o PL do Aborto vem daí, não imaginavam tamanha reação. Há um descolamento dos políticos com as ruas e uma percepção errada sobre o “sentimento da sociedade”. O passo foi maior que a perna.
A reação ao projeto que pode resultar em uma prisão maior para vítima de estupro que fizer aborto do que quem a violentou mostrou que existe um freio ao retrocesso. E que a sociedade consegue fazer uma distinção entre o que são as pautas conservadoras e as medievais e fundamentalistas.
O governo pecou pelo mesmo erro. Lula só botou a cara a tapa para ser contra o projeto, quando a pauta já estava politicamente enfraquecida. Chegou atrasado. Se o petista tivesse vindo a público logo no início, teria apimentado o debate ou chamado para si uma visão sóbria sobre o que é política pública, lei e direito das mulheres? Não saberemos responder. Ao que se sente no ambiente na Câmara, novos textos surgirão: PEC das Drogas, liberação de trabalho a partir de 14 anos, invalidação de delações. E com isso, novas oportunidades de Lula se posicionar ou se acovardar.
Esse contexto tem um paralelo evidente com os Estados Unidos. Lá, como aqui, a economia melhorou, mas o presidente democrata Joe Biden sua a camisa na corrida eleitoral deste ano contra o republicano Donald Trump. Ainda que existam diferenças sociais e culturais entre os dois países, no mundo integrado em que vivemos, comportamentos políticos se assemelham.
Os políticos e analistas americanos foram pegos de surpresa ao perceberem que o aborto virou uma bandeira política importante nas eleições midterm de 2022 - de meio de mandato para toda Câmara e um terço do Senado. O posicionamento contrário ao aborto, por cerca de 50 anos, foi corroborado por parte do partido Republicano. Ocorre que em junho de 2022, a Suprema Corte americana derrubou a proteção constitucional do direito ao aborto que perdurava desde 1973, no caso conhecido como Roe contra Wade. Houve restrições por parte dos estados.
As eleições de midterm se deram na ebulição dessas mudanças e se esperava uma onda republicana. Mas que perdeu força ante movimentos feministas que encamparam o tema aborto e foram às urnas votar em democratas. O partido do já presidente Joe Biden percebeu o barulho das ruas no meio do caminho e encampou a bandeira.
Biden tirou lições do episódio e já faz campanha em prol do aborto. E também quanto ao uso de maconha. Em março deste ano escreveu no X, antigo Twitter: “ninguém deveria ser preso por simplesmente usar ou portar maconha”.
Por aqui, no Supremo Tribunal Federal julgam a criminalização do porte e uso das drogas, os reacionários, óbvio, reagem. Lula pouco fala, e a pauta gestada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), avança.
Lá nos EUA, assim como no Brasil, a economia tem melhorado sem dar um ganho de popularidade para os governantes.
A economia importa para o voto. Não por acaso, Jair Bolsonaro (PL) abriu os cofres públicos e causou um rombo bilionário cedendo a torto e à direito benefícios a caminhoneiros, taxistas, Auxílio Brasil e financiamentos consignados. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atribui ao ex-presidente metade do déficit de R$ 230 bilhões de 2023 por conta do calote dado aos governadores e ao não pagamento de precatórios - dívidas judiciais que a União não pode mais recorrer.
Bolsonaro, Trump, Biden, Lula e qualquer um sabe que a economia importa. O último Datafolha trouxe esta semana a percepção da população sobre o avanço da economia, vale conferir. Dessa quadra de políticos, só Lula parece não saber ou não querer enfrentar temas que estão na boca da extrema direita há anos e também pesam na hora do voto. É um risco assumido.
Bom fim de semana!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos