Dados divulgados nesta semana pelo Banco Central reforçam a percepção de que há uma epidemia passando pela palma da mão dos brasileiros: a jogatina das bets. É verdade que alguns dos artistas e influencers que se dispõem a propagandear essa prática estão passando por maus bocados com a Justiça e conhecendo a vida na cadeia. Mas em geral, a propaganda deu certo. Casas de apostas e de jogos de azar receberam R$ 20,8 bilhões em transferências em agosto - valor mais de dez vezes superior ao que foi pago pelos jogos nas lotéricas.
O levantamento indicou que em agosto, 5 milhões de pessoas de famílias beneficiárias do Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões via Pix a plataformas de apostas, o valor equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês.
O Banco Central elaborou a nota técnica a pedido do senador Omar Aziz (PSD-AM), crítico da atuação pouco regulada das bets. Ele já havia pedido à Procuradoria-Geral da República a suspensão das empresas. O assunto escalou com discussões que ganharam urgência (tardia) no Supremo Tribunal Federal, no governo Lula (PT), no Congresso e entre outros atores da sociedade, como representantes de bancos e comércio, por exemplo.
A questão é grave e abrangente por entrelaçar diferentes problemas. Para onde se olhar haverá desafios: a saúde mental e o vício, a lavagem de dinheiro e o crime organizado, o impacto sobre a renda e endividamento das famílias, diminuição do consumo, arrecadação do governo, a manipulação de competições esportivas, o poder econômico e influência desses grupos sobre a sociedade, etc.
Há algum tempo setores do comércio, serviço e turismo já alertavam sobre a parte que mais lhes afeta nisso tudo, a troca das compras pelas bets e pela inadimplência.
O nome "jogo de azar" é auto explicativo, ao menos deveria ser. Quem se dispõe a botar dinheiro nisso, mesmo sem ter consciência, não está tentando a sorte, está atirando no escuro com expectativa de acertar na mosca.
Seria como se um produtor rural ocupasse suas terras semeando milho e mesmo vendo que as plantas não crescem, continuasse investindo nessa cultura com esperança de que uma só espiga vingue e lhe dê o retorno milionário de toda safra. Mesmo sem retorno, o produtor segue em frente, vende tudo o que tem, quebra e sai devendo com a ilusão de que a espiga de ouro estava quase nascendo.
Nos jogos de azar é semelhante, coça a mão do apostador o pensamento de que é possível ver ali uma estratégia de investimento. Ou que “faltou só um número”, “uma combinação”, “eu estou quase lá”, “na próxima eu ganho”. É essa ideia que seduz. E aí está a cilada e, em algumas situações, o vício.
O jogo e as apostas fazem parte da cultura do brasileiro e devem ser regulamentados com ampla discussão e fiscalização. A simples proibição não acabará com a prática, vejamos o jogo do bicho. O Estado - governo, polícias, promotorias, parlamentares, órgãos de controle - precisa se fazer presente e ter atuação firme sobre as bets. É quem tem instrumentos e legitimidade para coordenar este mercado.
Se refletirmos um pouco vamos perceber que é óbvio que o Estado precisa reger essa atividade e determinar o que pode e não pode, e o quanto pode. É papel do Estado fazer essa e tantas outras intervenções. Aposto com você que a imensa maioria da população seria contra acabar com as regras que organizam o trânsito, as normas e fiscalização sobre o setor de aviação. Já pensou em embarcar em um avião sem saber se ele está com a vistoria, a regulagem, condições de voo em dia? E sem saber se o piloto é, de fato, um profissional treinado que sabe o que está fazendo?
Politicamente, a questão pode unir governo e parte da oposição, principalmente a bancada evangélica - mais crítica ao jogo. É preciso coordenação, planejamento e vontade política para avançar nesse tema. Mas já aviso que o caminho será difícil. Quer apostar?
Bom fim de semana!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro.