A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que firmou uma tese permitindo a possibilidade de responsabilização civil de empresas jornalísticas que publicarem declarações de um entrevistado que atribui crimes de forma falsa a uma terceira pessoa é uma confusão. A tese, que servirá de base para julgamento país afora, traz mais dúvidas do que respostas e pode levar à autocensura de jornalistas.
O caso: por 9 a 2, o STF estabeleceu o entendimento de que jornais podem ser responsabilizados civilmente por injúria, difamação ou calúnia em razão de declarações feitas em entrevistas. O caso analisado era sobre uma entrevista publicada em 1995 pelo jornal Diário de Pernambuco.
Foi analisada a entrevista de um político alinhado ao regime militar, que acusou o ex-deputado Ricardo Zarattini Filho de ter participado de um atentado realizado em 1966, que resultou em mortes. Quando a publicação se deu, já havia indícios de que tal acusação era manifestamente falsa.
No informativo do STF sobre o julgamento, disponível no site do Supremo, há o questionamento jurídico do caso: A empresa jornalística pode ser condenada pela publicação de entrevista na qual o entrevistado, sem ter provas, acusa outra pessoa de praticar um crime?
O entendimento do STF é de que sim, pode, em situações “muito excepcionais,”, quando houver duas condições: 1- à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e 2- o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios.
E a confusão se dá aí, pela vagueza do entendimento e ambiguidade. Quais são as situações excepcionais? Serão os juízes que vão definir o que são “indícios concretos” e “o veículo deixou de observar” a veracidade dos fatos? Como e a partir de quê?
Em quantos casos é possível ter uma prova definitiva sobre um caso de racismo, de estupro, uma denúncia de um esquema de corrupção negociado no fio do bigode? Em casos assim, a fala do denunciante será ignorada pela imprensa - e consequentemente, omitida da população?
Considerando este novo entendimento, como proceder em uma entrevista ao vivo na TV, no rádio ou na internet que o entrevistado resolva botar a boca no mundo e trazer denúncias graves?
Recorro ao caso do Mensalão, quando, em 2005, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) foi à repórter Renata Lo Prete, na Folha de S. Paulo, dizer que o governo Lula (PT) comprava apoio ilegal no Congresso. O que sustentava sua denúncia era sua fala.
Assim como as denúncias sobre os abusos de João de Deus. O caso veio à tona em dezembro de 2018, quando vítimas deram entrevistas ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, relatando abusos sexuais.
Essas informações seriam publicadas hoje?
A publicação de uma denúncia assim, ainda que checada com todo rigor e reflexão ética, é um trabalho jornalístico. Isso significa esbarrar em alguns limites. Não se pode, por exemplo, acessar dados bancários e conversas privadas de uma pessoa, como nas investigações policiais.
Outra questão: e se o entrevistado for um procurador acusando um político sem provas, mas com convicções do crime? Essa questão vai nos remeter à Lava Jato.
A discussão fica ainda mais turva quando considerada a realidade de veículos de imprensa menores e espalhados pelo interior do país. O custo de ter assessoria jurídica para avaliar cada caso de entrevista vai inviabilizar a publicação, perderá o veículo e a população.
Seja por decisão judicial ou autocensura, sempre que uma informação de interesse público é escondida do povo, a democracia se enfraquece e algum sacana se beneficia por não sair no jornal.
Bom fim de semana!
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos