Hidroxicloroquina: como sua prescrição equivocada contra a COVID-19 colocou a ciência em xeque, estimulou a desinformação e prejudicou políticas públicas de tratamento

O artigo do pesquisador francês Didier Raoult foi usado como base para que líderes políticos de extrema-direita apoiassem o uso da hidroxicloroquina como política pública, uma vez que o uso dessas drogas seria uma alternativa às medidas de restrição de circulação de pessoas e consequente diminuição da atividade econômica

19 dez 2024 - 13h03

A retratação do artigo sobre o uso de hidroxicloroquina de autoria de uma equipe de cientistas lideradas pelo médico Didier Raoult - quatro anos após a sua publicação - expõe uma falha no sistema de publicação de artigos científicos em revistas especializadas. No caso em questão, que influenciou o mundo inteiro, todos os filtros de validação e checagem fracassaram, ao permitirem que um estudo com falhas metodológicas fosse publicado no periódico International Journal of Antimicrobial Agents, da prestigiosa editora Elsevier.

Raoult, um microbiologista francês e especialista em doenças infecciosas, ganhou notoriedade durante a pandemia de COVID-19 ao defender, precocemente, o uso da hidroxicloroquina, uma droga prescrita para combater a malária, como tratamento para a doença. Ele publicou, com sua equipe, o estudo controverso "Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial" em 20 março de 2020, apenas 9 dias após a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizar a Covid-19 como pandemia. Nele, Raoult em coautoria com Philippe Brouqui e outros, analisava o efeito da hidroxicloroquina, combinada ou não com azitromicina, em pacientes com COVID-19.

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A pesquisa teve ampla e imediata repercussão, mas foi alvo de críticas pela comunidade científica devido a problemas metodológicos. No estudo aberto, não randomizado, realizado no Hospital-University Institute Mediterranean Infection (IHU), em Marselha, França, 26 pacientes receberam tratamento com hidroxicloroquina, sendo que 6 também receberam azitromicina. Já um grupo de controle com 16 pacientes foi tratado em outros hospitais sem esses medicamentos. O grupo tratado com hidroxicloroquina teria apresentado uma redução mais rápida da carga viral em comparação com o grupo controle e combinada com azitromicina, os resultados teriam sido ainda mais positivos.

O estudo foi criticado por sua metodologia, incluindo a falta de randomização e controle adequado, o que compromete a validade dos resultados. A alocação aleatória dos participantes, impossibilitou eliminar vieses relacionados ao perfil clínico dos poucos pacientes sendo que a principal métrica de sucesso utilizada foi a redução da carga viral, e não outros desfechos clínicos como mortalidade ou necessidade de ventilação mecânica.

Não houve controle placebo, comprometendo a validade dos resultados e pacientes graves foram excluídos, limitando a aplicação dos resultados a casos leves. Não apenas isso como, apesar do primeiro artigo ter sido prontamente rechaçado pela comunidade acadêmica, Raoult e sua equipe ainda publicaram outro artigo Outcomes after early treatment with hydroxychloroquine and azithromycin: An analysis of a database of 30,423 COVID-19 patients na publicação New Microbes and New Infections, da mesma Elsevier.

Estudos subsequentes mais robustos, incluindo ensaios clínicos randomizados, não encontraram eficácia significativa da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19 e indicaram potenciais riscos, como arritmias cardíacas. O artigo de Raoult teve grande repercussão e foi usado como base para que líderes políticos de extrema-direita, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, apoiassem o uso da hidroxicloroquina como política pública, uma vez que o uso dessas drogas seria uma alternativa às medidas de restrição de circulação de pessoas e consequente diminuição da atividade econômica.

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Interessante que, paralelamente, também uma literatura revisionista de esquerda passou a criticar os efeitos econômicos da política de lockdown. Entre eles o livro "The Covid Consensus: The Global Assault on Democracy and the Poor - A Critique from the Left" publicado em 2023 por Toby Green, professor de História Africana no King's College London, e pelo jornalista Thomas Fazi.

Os autores argumentam que as políticas de lockdown implementadas durante a pandemia de COVID-19 exacerbaram tendências pré-existentes de desigualdade, afetando principalmente os mais pobres, mediatização e vigilância, com graves implicações para o futuro. Entre elas, a adoção de medidas restritivas sem amplo debate público teria enfraquecido práticas democráticas e a expansão de tecnologias de monitoramento durante a pandemia poderia estabelecer precedentes preocupantes para a privacidade e as liberdades civis.

O lançamento do livro levantou preocupações sobre a potencial disseminação de desinformação e o impacto na confiança pública em medidas sanitárias ao divergir do consenso científico predominante sobre a eficácia dos lockdowns na redução da transmissão do vírus e desestimular a confiança pública em medidas comprovadas de saúde, como a vacinação.

Movimento anti-vacina e estudo britânico

A publicação de artigos científicos falhos por parte de grandes editoras encontra eco na publicação em 1998, pelo médico britânico Andrew Wakefield de um estudo no periódico The Lancet sugerindo uma ligação entre a vacina tríplice viral (MMR), que protege contra sarampo, caxumba e rubéola, e o desenvolvimento de autismo em crianças. O artigo "Ileal-lymphoid-nodular hyperplasia, non-specific colitis, and pervasive developmental disorder in children" analisou apenas 12 crianças e propôs que a vacina poderia estar associada a distúrbios gastrointestinais que, por sua vez, levariam ao autismo, um número insuficiente para estabelecer qualquer correlação estatisticamente significativa. Não houve comparação com um grupo de crianças não vacinadas, comprometendo a validade dos resultados.

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Posteriormente, descobriu-se que Wakefield havia recebido pagamentos de advogados que representavam pais em ações legais contra fabricantes de vacinas, indicando um potencial viés nos resultados. Pior, investigações revelaram que Wakefield manipulou dados e falsificou informações, incluindo alterações nos históricos médicos das crianças, para apoiar suas conclusões.

A publicação gerou medo e desconfiança em relação às vacinas, resultando em uma diminuição significativa nas taxas de imunização e, consequentemente, em surtos de doenças previamente controladas, como o sarampo. Em 2010, após investigações, The Lancet retratou formalmente o artigo, e Wakefield teve sua licença médica cassada no Reino Unido devido a má conduta profissional.

Apesar de amplamente desmentida, a falsa associação entre vacinas e autismo continua a influenciar movimentos anti vacinação, perpetuando mitos e colocando a saúde pública em risco. Esse movimento teve um novo renascer com a pandemia e grupos que anteriormente tinham como alvo a vacinação passaram a focar na disseminação de desinformação sobre a Covid 19.

Impacto nas políticas públicas

O impacto dessas falhas científicas vai além das estatísticas e da confiança pública na ciência: elas têm profundas implicações para a formulação de políticas públicas baseadas em evidências. Quando estudos falhos ou metodologicamente comprometidos ganham ampla visibilidade, como no caso da hidroxicloroquina, decisões governamentais podem ser fundamentadas em informações inadequadas ou desatualizadas, desviando recursos valiosos de estratégias comprovadas.

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Durante a pandemia de COVID-19, a promoção da hidroxicloroquina como tratamento, mesmo sem evidências sólidas, levou governos a investir em estoques do medicamento e a priorizá-lo em protocolos de saúde, enquanto medidas mais eficazes, como a ampliação da capacidade de testagem e vacinação, poderiam ter recebido maior atenção.

Além disso, a disseminação de desinformação científica gera um efeito cascata nas políticas públicas. Ao alimentar narrativas contrárias ao consenso científico, esses estudos comprometem a capacidade de governos e organizações internacionais de implementar medidas baseadas em evidências. Por exemplo, o fortalecimento de movimentos antivacina dificulta campanhas de imunização em larga escala, o que não apenas ameaça a saúde pública, mas também gera custos econômicos e sociais elevados devido ao ressurgimento de doenças preveníveis.

Esse ciclo se retroalimenta: a desconfiança gerada por decisões políticas equivocadas baseadas em ciência de baixa qualidade reforça a percepção pública de que a ciência é falível ou politizada, tornando ainda mais difícil a adoção de políticas eficazes no futuro.

A retratação do artigo de Raoult e outros casos semelhantes devem servir como um alerta urgente para fortalecer os pilares das políticas públicas baseadas em evidências. Isso inclui não apenas a rigorosa revisão e validação de pesquisas, mas também a educação científica da população e a transparência na comunicação entre cientistas, tomadores de decisão e o público.

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Em tempos de desafios globais complexos, como pandemias, mudanças climáticas e crises de saúde pública, políticas baseadas em ciência sólida são não apenas desejáveis, mas essenciais para proteger vidas e garantir um futuro sustentável. A ciência deve estar a serviço da sociedade, e não ser um instrumento de desinformação ou interesses particulares.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Mario Aquino Alves recebe financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Guilherme Nogueira Bittar Celestino não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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