'Holocausto esquecido': ciganos lutam pela memória de vítimas do nazismo

Os nazistas mataram mais de 11 milhões de pessoas durante o Holocausto, incluindo seis milhões de judeus. Grupo de nômades marginalizado, os ciganos também sofreram muito durante a guerra. Quase um quarto de sua população foi exterminada na Europa e, mesmo décadas depois, muitos não sabem desse passado de sofrimento.

24 jan 2023 - 08h48
(atualizado às 10h42)
Hinta Gheorghe ao lado da esposa, Agripina Hirta; ele diz que gerações de ciganos sofreram ódio e discriminação
Hinta Gheorghe ao lado da esposa, Agripina Hirta; ele diz que gerações de ciganos sofreram ódio e discriminação
Foto: Delfin Lakatosz / BBC News Brasil

"Por que eles queriam nos matar? Por que nos mataram?", indaga Hinta Gheorghe, cigano e sobrevivente do Holocausto de 83 anos.

Aos dois anos de idade, durante a Segunda Guerra Mundial, ele foi levado para um campo de concentração na Transnístria, uma área entre os rios Dniester e Bug. O campo foi administrado pelo Reino da Romênia entre 1941 e 1944.

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"Não tenho muitas lembranças da viagem em si, mas ela deixou marcas em toda a minha existência", disse Gheorghe à BBC por meio de sua sobrinha-neta Izabela Tiberiade.

Aproximadamente 11 milhões de pessoas foram mortas por causa da política genocida nazista, e 5 milhões dos assassinados não eram judeus.

Historiadores estimam que 250 mil a 500 mil ciganos foram assassinados durante o Holocausto — mas essas vítimas permanecem em grande parte esquecidas.

Os nazistas acreditavam que os alemães eram arianos, uma "raça superior". Algumas pessoas eram consideradas indesejáveis pelos padrões nazistas por suas origens genéticas, culturais ou por condições de saúde. Entre os grupos assim considerados estavam judeus, ciganos, poloneses e outros eslavos, além de pessoas com deficiências físicas ou mentais.

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As vítimas incluíam ainda Testemunhas de Jeová, homossexuais, clérigos dissidentes, comunistas, socialistas, "associais" (um termo usado pelos nazistas para categorizar pessoas que não se conformavam com suas normas sociais) e inimigos políticos.

Campos de extermínio

Izabela Tiberiade diz que seu tio-avô é muito traumatizado para relatar todas as histórias horríveis que ele escutou
Foto: Delfin Lakatosz / BBC News Brasil

"Minha mãe perdeu filhos durante a viagem em veículos usados para transportar gado. Acho que parte dela ficou para sempre ali, mesmo depois de longos anos", conta Gheorghe.

"Nós entendemos o que estava acontecendo no campo antes mesmo de chegarmos lá. Muitos morreram no caminho."

O "Escritório Central de Combate ao Problema Cigano", em Munique, foi criado em junho de 1936 pelos nazistas. O órgão foi encarregado de "avaliar os resultados de pesquisas raciais-biológicas" sobre os ciganos.

Em 1938, ciganos dos grupos Sinti e Roma passaram a ser enviados para campos de concentração.

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Fotos da prisioneira cigana Antonina Donga, levada a campo de concentração Auschwitz-Birkenau
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Como os judeus, os ciganos foram privados de seus direitos civis. As crianças foram banidas das escolas públicas e os adultos tiveram cada vez mais dificuldade de garantir um emprego.

Os ciganos que haviam se estabelecido na Alemanha foram perseguidos por séculos. O regime nazista continuou a perseguição, vendo essas pessoas como antissociais e racialmente inferiores aos alemães.

"Ninguém se importava conosco, mas, ao mesmo tempo, eles nos odiavam muito", lembra Gheorghe.

Campo cigano em Auschwitz

Em 1943, uma grande área do campo Auschwitz-Birkenau foi designada para os ciganos.

O número de detidos é estimado em cerca de 23 mil. Muitos se tornaram vítimas de experimentos médicos; outros morreram de exaustão ou foram mortos nas câmaras de gás.

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Flores em homenagem aos ciganos no campo de Buchenwald
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O campo foi dissolvido em agosto de 1944. Muitos de seus prisioneiros foram assassinados ou transferidos para outros campos. Ao fim, pelo menos 21 mil homens, mulheres e crianças foram mortos.

Quando Hinta Gheorghe e os sobreviventes de sua família retornaram do campo de extermínio após três terríveis anos, eles descobriram que suas casas na Romênia tinham sido destruídas ou tomadas por outra pessoa.

"Eles nos desumanizaram e o pior é que ainda nos privam da nossa história. Muitas crianças hoje em dia não fazem ideia do que aconteceu, mas escutam cantigas sobre o que ocorreu das avós, que choram enquanto cantam."

"Nossas canções carregam o sofrimento, as condições insuportáveis e devastadoras dos campos. Sujeira, fome, frio, abrigos inadequados [...], superlotação levando a doenças lentas e dolorosas".

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Preconceitos arraigados

Barbara Warnock, curadora sênior da Biblioteca do Holocausto de Wiener, localizada em Londres, diz que a exclusão social e a discriminação legalizada na sociedade alemã tornaram muito mais fácil para os nazistas atingirem a comunidade cigana.

Foto de um cigano (possivelmente Jozef Kwiek) usando uma braçadeira; a imagem data de 1940 e foi tirada no campo de trabalho de Belzec
Foto: Wiener Holocaust Library Collections / BBC News Brasil

"No começo, houve uma espécie de continuação de medidas e atitudes preconceituosas já existentes. Os nazistas se basearam na legislação vigente. Os ciganos eram um grupo bastante marginalizado na Alemanha", diz ela.

Warnock também aponta para a falta de registros oficiais sobre os ciganos durante a Segunda Guerra Mundial.

"Há muita incerteza sobre os números. Alguns foram mortos em campos de extermínio, muitos morreram em tiroteios em massa, principalmente em territórios soviéticos. O exército alemão foi acompanhado por Einsatzgruppen (esquadrões da morte paramilitares da Alemanha nazista) e colaboradores locais estiveram envolvidos no tiroteios em massa".

Imediatamente após a guerra, muitos nazistas importantes foram capturados e julgados por tribunais militares e pelo tribunal de Nuremberg. Nesses casos, ninguém foi acusado de matar um cigano.

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Os nazistas frequentemente afirmavam que "os ciganos que prenderam eram criminosos".

Medos renovados

Para Gheorghe, a discriminação que ele e sua comunidade vêm enfrentando na Alemanha não se limitou ao regime nazista.

A nova geração de ciganos, incluindo jovens como Izabela Tiberiade, está empenhada em manter vivas as memórias do Holocausto para mudar a narrativa sobre sua comunidade
Foto: Delfin Lakatosz / BBC News Brasil

Após a queda do comunismo soviético, Gheorghe trocou a Romênia pela Alemanha.

Mas poucos meses depois de chegar, ele testemunhou um brutal ataque xenófobo em 1992, conhecido como ataque de Rostock-Lichtenhagen, ocorrido em agosto daquele ano.

Foi o pior ato de violência da extrema-direita na Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial. Os extremistas atacaram os migrantes atirando pedras e coquetéis molotov em um prédio onde viviam solicitantes de asilo.

"É tão triste que o sucessor do povo que trouxe tanto sofrimento carregue o mesmo legado. Nossos filhos merecem mais do que ódio e raiva", diz Hinta Gheorghe.

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Nova geração

Os descendentes das vítimas esquecidas do Holocausto também aumentaram o interesse pelos sofrimentos de seus ancestrais.

Izabela Tiberiade diz que achava que o racismo contra os ciganos era coisa do passado — até que ela mesma foi vítima do ódio
Foto: Delfin Lakatosz / BBC News Brasil

A sobrinha-neta de Hinta Gheorghe, Izabela Tiberiade, ainda não havia nascido quando sua família enfrentou novos ataques inspirados na ideologia neonazista.

Na escola, ela estudou sobre a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, mas o sofrimento dos ciganos foi omitido, diz ela. Foi apenas em casa, na Romênia, que ela se debruçou sobre o assunto. Determinada a buscar justiça, ela decidiu estudar direito internacional e direitos humanos.

"Eles costumavam contar histórias que nossas novas gerações não podiam compreender", diz Tiberiade sobre gerações as mais velhas.

"Descobri que meus avós, tios e muitos outros compartilharam a mesma experiência. Eles foram deportados para campos de extermínio apenas porque eram ciganos."

"As novas gerações não têm acesso à informação, falta representatividade e os jovens raramente se ligam ao seu passado e às raízes. Alguns até consideram que ser cigano é algo muito errado."

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Izabela Tiberiade acredita que se mais pessoas fossem informadas sobre as vítimas esquecidas do Holocausto, haveria mais empatia com os ciganos
Foto: Delfin Lakatosz / BBC News Brasil

Izabela Tiberiade trabalha para a organização juvenil cigana Dikh he na bsiter ("Olhe e não esqueça"), que visa disseminar o que aconteceu à comunidade cigana durante o Holocausto.

Tiberiade quer que os jovens ciganos, assim como outros, aprendam mais sobre o Holocausto, o que "ela espera que faça com que outras pessoas vejam sua comunidade com muito mais empatia".

Há também esforços internacionais.

Em 2015, um relatório das Nações Unidas pediu um compromisso político forte e tangível para combater a discriminação que continua a levar a violações dos direitos do povo rom.

O Parlamento Europeu também aprovou, em 2015, a criação do Dia em Memória do Holocausto Rom. A data ocorre todo 2 de agosto. Os ciganos também são lembrados ao lado de outras vítimas durante o Dia Memorial do Holocausto.

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"Não podemos mudar muito da noite para o dia. Demanda tempo, determinação e muito esforço. Precisamos de aceitação e tolerância", diz Tiberiade.

"Precisamos celebrar nossa cultura, história e idioma juntos. Precisamos parar de falar sobre os outros, mas sim conversar uns com os outros."

O tio-avô de Tiberiade, sobrevivente do Holocausto, Hinta Gheorghe, agora vive em Craiova, na Romênia. Ele tem um desejo para sua comunidade:

"Quero que todos os jovens ciganos frequentem a escola, aprendam e realizem tudo o que nunca pudemos."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64381258

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