Atualização: No dia 7 de janeiro de 2025, Mark Zuckerberg, presidente da Meta, anunciou que Facebook e Instagram abandonariam os processos de checagem de fatos. Apesar da limitada eficácia do fact-checking em reduzir a crença em desinformação, a decisão revela as reais intenções políticas da corporação frente à nova correlação de forças com a vitória eleitoral da extrema-direita nos EUA. Agora, informações falsas serão apontadas apenas pelos próprios usuários, sem nenhum tipo de marcação especial pela plataforma. As medidas anunciadas incluem ainda o aumento do impulsionamento de conteúdos políticos e a transferência da equipe de moderação da Califórnia para o Texas, uma mudança com forte simbolismo político.
Esse cenário representa uma oportunidade para que magnatas das plataformas digitais fortaleçam a cruzada imperial contra iniciativas que buscam mitigar os danos causados pela proliferação de discursos de ódio, especialmente em países como o Brasil. Enquanto isso, a Meta segue censurando conteúdos que denunciam o genocídio do povo palestino por Israel. O episódio remete ao testemunho de Frances Haugen, ex-gerente do Facebook, que, em 2021, revelou ao Senado dos EUA que a plataforma prioriza o engajamento em detrimento da segurança dos usuários. A retórica da liberdade de expressão é usada como cavalo de troia para justificar a vocalização do fascismo, não importa o quanto isso possa desestabilizar governos e fraturar sociedades. Apesar do impacto negativo para a integridade da informação online, a medida escancara como essas empresas nunca estiveram genuinamente preocupadas com a qualidade do debate público e a preservação da democracia.
Em novembro de 2024 ocorreu no Rio de Janeiro a 1ª Conferência Internacional de Integridade da Informação. Na ocasião, diversos pesquisadores de várias partes do Brasil e de outros países se reuniram para discutir como fortalecer informações mais íntegras na internet, isto é, mais confiáveis, consistentes e seguras.
Entre mesas sobre desinformação ambiental, soberania digital e uso de inteligência artificial para promover desinformação em processos eleitorais, as discussões sempre tocavam um ponto comum: o papel central desempenhado pelas plataformas de negócios digitais no atual contexto sociotécnico, marcado por sobrecarga informacional, falta de privacidade, desinformação e insegurança, problemas que prejudicam a qualidade da internet e vem comprometendo uma série de aspectos do mundo social como um todo.
Diante de tantos problemas, a necessidade de regulamentação implica estabelecer regras de convivência em um ambiente descontrolado ou sujeito apenas ao controle privado, não necessariamente comprometido com os valores republicanos que devem guiar toda a vida pública, incluindo aquela que se desenvolve em contextos virtuais e digitais.
As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que emergiram a partir da convergência das indústrias de informática, telecomunicações e mídia, redefiniram profundamente a organização econômica e social global. Desde os anos 1970, essas tecnologias se consolidaram como ferramentas fundamentais para o avanço do capitalismo em sua etapa tardia, financeira e neoliberal, cuja expansão foi marcada pela busca de mercados desregulados, por pressões pela sua desregulamentação e pela promoção da globalização dos fluxos de capital.
Nesse contexto, as plataformas de negócios digitais, como expressão culminante das TICs, tornaram-se um fenômeno central da economia global, transformando não apenas os mercados, mas também as relações sociais, políticas e culturais. As plataformas digitais assumiram posição tão dominante na economia contemporânea porque são capazes de conectar oferta e demanda em um mesmo ambiente tecnológico, onde há massiva coleta de informações com processamento inteligente por meio de programações algorítmicas e sistemas de inteligência artificial.
Essa infraestrutura potencializa a eficiência econômica, ao maximizar transações de mercado e impulsionar a produção de riqueza. Contudo, isso também introduziu novas dinâmicas de controle social e político. Com a expansão da globalização econômica e a integração de mercados, as atividades das plataformas digitais atravessam fronteiras, influenciando não apenas as economias, mas também a organização das relações sociais e políticas globais.
As plataformas digitais podem ser definidas como sistemas tecnológicos que medeiam interações, comunicações e transações em um ambiente digital conectado, fortemente apoiado na coleta e processamento de dados. Elas desempenham um papel central na emergência do que o professor de Humanidades Digitais do King's College de Londres, Nick Srnicek, chama de 'capitalismo de plataforma'.
Essa nova fase do desenvolvimento capitalista é caracterizada pela intermediação digital e pelos efeitos de rede, nos quais o valor da plataforma aumenta conforme cresce seu número de usuários, favorecendo assim um ambiente propício à monopolização dos mercados. Essa tendência é reforçada por práticas como subsídios cruzados, que atraem usuários com serviços gratuitos enquanto geram receitas por meio da exploração de dados pessoais convertidos em publicidade personalizada.
Srnicek aponta que a crescente dominância das plataformas digitais foi impulsionada por sua capacidade técnica de organizar mercados e estabelecer novas dinâmicas de interação, nas quais a interdependência entre os usuários é moldada pela prerrogativa das plataformas de definir regras que favorecem seus interesses corporativos.
Impactos sociais negativos
Mas o impacto das plataformas digitais vai além das dinâmicas econômicas. No âmbito social, essas plataformas reconfiguram também as interações humanas e os processos de formação de opinião. O uso de algoritmos para personalizar conteúdos cria um fenômeno conhecido como 'filtros de bolha', conforme descrito por Eli Pariser. Essa personalização invisível expõe os usuários a informações que reforçam suas crenças preexistentes, contribuindo para maniqueísmos e a disseminação de desinformação.
Além disso, a concentração de poder em um pequeno número de empresas - como Google, Meta e Amazon - intensifica as desigualdades econômicas e reduz a concorrência, estabelecendo monopólios digitais. As consequências dessa concentração também se manifestam no acesso desigual a tecnologias, na dependência tecnológica e na exclusão digital de comunidades vulneráveis. Para essas comunidades, a ausência de acesso a plataformas representa não apenas uma lacuna tecnológica, mas também a perda de oportunidades econômicas, educacionais e culturais.
A coleta e o processamento de dados em larga escala também levantam questões sobre privacidade e controle. A economista Shoshana Zuboff aponta a existência de um 'capitalismo de vigilância', que transforma a vida humana em uma fonte de dados, extraídos e utilizados para prever e influenciar comportamentos. Esse modelo de negócio compromete direitos fundamentais, como a privacidade, e cria um sistema de vigilância distribuído, que afeta desde a navegação online até as interações cotidianas mediadas por dispositivos conectados.
Em um contexto em que os dados se tornaram uma das principais commodities globais, surgem preocupações sobre a manipulação algorítmica para moldar opiniões, influenciar escolhas de consumo e controlar narrativas públicas. Além disso, essa vigilância constante gera um estado de ansiedade permanente entre os indivíduos, que se sentem constantemente monitorados e avaliados, com impactos deletérios sobre sua saúde mental.
No campo do trabalho, as plataformas digitais reestruturaram relações laborais, promovendo a precarização e ampliando formas de exploração. Modelos como a gig economy ou economia dos 'bicos' ilustram como essas empresas externalizam riscos e reduzem custos ao classificar trabalhadores como autônomos, sem garantias trabalhistas.
Além disso, a dependência de dados para a organização de processos produtivos introduz um novo tipo de controle algorítmico, que limita a autonomia dos trabalhadores e reduz sua capacidade de negociação. A precarização do trabalho também tem impacto direto na segurança financeira e nas perspectivas de longo prazo dos trabalhadores, agravando desigualdades sociais preexistentes.
A centralidade das plataformas digitais também tem consequências políticas significativas. O controle sobre os fluxos de informação permite a essas empresas influenciar opiniões públicas e processos democráticos. O escândalo da Cambridge Analytica, por exemplo, demonstrou como dados coletados por plataformas como o Facebook podem ser utilizados para manipular eleitores e moldar resultados eleitorais.
Essa capacidade de influência é potencializada pela opacidade dos processos algorítmicos, que dificulta a responsabilização dessas empresas. Por tudo isso, a influência dessas plataformas nos sistemas democráticos levanta questões sobre a necessidade de regulamentações mais rigorosas para proteger o debate público e assegurar a transparência nos processos decisórios.
Mais transparência e segurança
Diante desses desafios, é fundamental repensar os modelos de negócio e a governança das plataformas digitais. Pesquisadores como Helena Martins, Rodrigo Moreno Marques e Sergio Amadeu da Silveira, conferencistas do evento no Rio de Janeiro, defendem a necessidade de incorporar valores públicos - como privacidade, equidade e segurança - às práticas dessas empresas.
Além disso, é crucial estabelecer regulamentações que limitem práticas monopolistas, protejam os direitos dos usuários e promovam uma distribuição mais justa dos benefícios gerados pela economia digital. Mas essas iniciativas precisam ser acompanhadas de esforços para aumentar a transparência no uso de dados e algoritmos, permitindo que usuários e governos compreendam e regulem melhor as operações dessas corporações.
Afinal, o impacto das plataformas digitais estende-se também à esfera cultural, em que suas dinâmicas de operação influenciam a produção e o consumo de conteúdo. A personalização de experiências e a ênfase na retenção da atenção criam uma economia cultural baseada em 'cliques', muitas vezes em detrimento da diversidade e da qualidade dos conteúdos.
Além disso, a crescente dependência de algoritmos para a distribuição de informação traz à tona o debate sobre o pluralismo e a liberdade de expressão na sociedade. Ao mesmo tempo, o avanço do capitalismo de vigilância exige uma reflexão profunda sobre como equilibrar inovação tecnológica e responsabilidade social, de modo a garantir que as plataformas digitais sirvam aos interesses coletivos em vez de perpetuar desigualdades e explorar vulnerabilidades sociais.
No século passado, o crescimento vertiginoso da indústria automotiva exigiu que a sociedade estabelecesse regras elementares para promover um trânsito mais seguro. Essas normas definiram responsabilidades entre usuários, empresas e governos, criando códigos de conduta compartilhados que ajudaram a mitigar os diversos problemas ocasionados pela proliferação de carros nas ruas. Neste século, marcado pela predominância da vida e dos fluxos digitais, enfrentamos o desafio político de implementar regulamentações eficazes que ampliem o controle ético e democrático da cidadania sobre os impactos negativos gerados pela concentração de poder dos monopólios globais das grandes plataformas digitais.
Juliano da Silva Borges não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.