Maconha, heroína e cocaína: a história das drogas proibidas que já foram vendidas e receitadas legalmente um dia

Cannabis para fins religiosos, cocaína no vinho e heroína para tosse. Essas são apenas algumas das maneiras pelas quais as drogas ilícitas foram usadas ao longo da história.

6 jan 2025 - 11h56
O "Xarope Peruano": contendo cocaína, era recomendando para combater de indigestão, fraqueza e até doenças hematológicas no começo do século 20. Smithsonian Museum of American History/Flickr
O "Xarope Peruano": contendo cocaína, era recomendando para combater de indigestão, fraqueza e até doenças hematológicas no começo do século 20. Smithsonian Museum of American History/Flickr
Foto: The Conversation

A cannabis, a cocaína e a heroína têm histórias de vida interessantes e longas fichas criminais. Talvez as conheçamos hoje como drogas ilícitas, mas cada uma delas já foi legal um dia.

Deixaram de ser por diversas razões. O racismo e a política desempenharam um papel importante na forma como diferentes sociedades viam e veem certas drogas até hoje. Também aprendemos mais sobre seus impactos na saúde. A confluência destes e outros fatores fez com que, com o tempo, elas fossem sendo declaradas ilegais.

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E agora, décadas depois desse processo, algumas dessas drogas e seus derivados estão sendo usados legalmente, para fins médicos.

Veja abaixo como acabamos proibindo a maconha, a cocaína e a heroína, e o que aconteceu depois.

Cannabis, religião e racismo

As plantas de cannabis originaram-se na Ásia Central, espalharam-se para o norte da África e depois para as Américas. As pessoas cultivavam a cannabis por sua fibra de cânhamo, usada para fazer cordas e sacos. Mas ela também tinha outras propriedades. Como muitas outras descobertas médicas antigas, tudo começou com a religião.

A cannabis é mencionada nos textos hindus conhecidos como os Vedas (1700-1100 a.C.) como uma planta sagrada e benéfica. A cannabis ou bhang ainda é usada ritualmente na Índia hoje durante festivais como o Shivratri e o Holi.

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No final dos anos 1700, os britânicos na Índia começaram a taxar os produtos de cannabis. Eles também notaram um alto índice de "insanidade do cânhamo indiano" - incluindo o que hoje reconhecemos como psicose - na colônia. No final do século XIX, uma investigação do governo britânico descobriu que apenas o uso pesado de cannabis parecia afetar a saúde mental das pessoas.

Cannabis indica extract
Foto: The Conversation
Este frasco de droga dos Estados Unidos contém tintura de cannabis.Wikimedia

Na década de 1880, a cannabis foi usada terapeuticamente nos Estados Unidos para tratar tétano, enxaqueca e "delírio insano". Mas nem todos concordavam (ou mesmo sabiam) qual era a melhor dose. Os produtores locais simplesmente misturavam o que tinham em uma tintura - embebendo folhas e brotos de cannabis em álcool para extrair óleos essenciais - e esperavam pelo melhor.

Então, como a cannabis passou de uma droga legal ligeiramente inútil para uma ameaça social?

Parte disso se deveu a preocupações genuínas com a saúde em relação ao que era adicionado aos alimentos, bebidas e remédios das pessoas.

Em 1908, na Austrália, New South Wales listou a maconha como um ingrediente que poderia "adulterar" alimentos e bebidas (juntamente com ópio, cocaína e clorofórmio). Para vender o produto legalmente, era preciso informar aos clientes que ele continha cannabis.

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Parte disso se deveu à política internacional. Os movimentos para controlar o uso da cannabis começaram em 1912 com o primeiro tratado mundial contra o tráfico de drogas. Os EUA e a Itália queriam incluir a maconha, mas isso só aconteceu em 1925.

Parte disso foi racismo. A palavra em espanhol marijuana foi muito utilizada nos EUA para associar o uso da maconha aos imigrantes pobres. Em 1915, El Paso, Texas, na fronteira com o México, foi o primeiro município dos EUA a proibir o comércio de cannabis não medicinal.

No final da década de 1930, a cannabis estava firmemente enraizada no imaginário da sociedade norte-americana e seus pares do Ocidente como uma ameaça pública, e leis sobre drogas foram introduzidas em grande parte dos EUA, Europa e (menos rapidamente) Austrália para proibir seu uso. A cannabis era agora um "veneno" regulamentado juntamente com a cocaína e os opiáceos.

Pôster do filme ‘Reefer Madness’
Foto: The Conversation
O filme Reefer Madness, de 1936, alimentou a paranoia da cannabis.Motion Picture Ventures/Wikimedia Commons

O filme Reefer Madness, de 1936, foi o ponto alto da paranoia contra a maconha nos EUA. O consumo de cannabis também fazia parte de outras subculturas "suspeitas", como o Black jazz e o movimento Beatnik, na décadas de 1950, e os militares americanos que voltavam da Guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70.

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Atualmente, o uso recreativo de cannabis está associado a danos físicos e mentais. Em curto prazo, prejudica seu funcionamento, inclusive sua capacidade de aprender, dirigir e prestar atenção. A longo prazo, os danos incluem aumento do risco de psicose.

Mas e quanto à cannabis como medicamento? Desde a década de 1980, houve uma mudança de humor no sentido de experimentar a cannabis como droga terapêutica. Os produtos de cannabis medicinal são aqueles que contêm canabidiol (CBD) ou tetrahidrocanabinol (THC). Atualmente, em alguns estados dos EUA, na Austrália e em alguns outros países, esses produtos podem ser prescritos por determinados médicos para tratar doenças quando outros medicamentos não funcionam.

No Brasil, o uso de maconha industrial para fins terapêuticos foi autorizado em acaba de ser autorizada pelo STJ, mas a lei que regerá a questão ainda não foi regulamentada pela Anvisa.

A cannabis medicinal tem sido apontada como tratamento para algumas doenças crônicas, como as dores causadas pelo câncer e esclerose múltipla. Mas ainda não está claro se ela é eficaz para a variedade de doenças crônicas para as quais é prescrita. No entanto, parece melhorar a qualidade de vida para pessoas com algumas doenças graves ou terminais que estão usando outros medicamentos prescritos.

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Cocaína, tônicos e dependência

Várias espécies diferentes da planta da coca crescem na Bolívia, no Peru e na Colômbia. Durante séculos, a população local mastigou folhas de coca ou as transformou em um chá levemente estimulante. Acredita-se que coca e a ayahuasca (um psicodélico à base de plantas) também podem ter sido usadas para sedar as pessoas antes do sacrifício humano nas civilizações incas e maias.

Em 1860, o cientista alemão Albert Niemann (1834-1861) isolou o alcaloide que hoje chamamos de "cocaína" das folhas de coca. Niemann notou que aplicá-lo na língua fazia com que ela ficasse dormente.

Porém, como já haviam sido descobertos anestésicos eficazes, como o éter e o óxido nitroso, a cocaína era usada principalmente em tônicos e medicamentos patenteados.

Hall's Coca Wine
Foto: The Conversation
O Hall's Coca Wine era feito com as folhas da planta da coca.Stephen Smith & Co/Wellcome Collection, CC BY

Talvez o exemplo mais famoso tenha sido a Coca-Cola, que continha cocaína quando foi lançada em 1886. Mas a cocaína foi usada antes, na Itália de 1860, em uma bebida chamada Vin Mariani, do qual o Papa Leão XIII era um fã.

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Com produtos à base de cocaína facilmente disponíveis, ela rapidamente se tornou uma droga popular, e altamente viciante.

No final do século 19 e início do século 20, a cocaína continuou popular no setor de entretenimento. O detetive fictício Sherlock Holmes, criação do escritor Arthur Conan Doyle, injetava-a para pensar melhor. O ator americano Tallulah Bankhead usava-a correntemente e a romancista Agatha Christie lançou mão da substância para matar alguns de seus personagens.

Em 1914, a posse de cocaína foi tornada ilegal nos EUA. Após a era hippie das décadas de 1960 e 1970, a cocaína se tornou a droga "da moda" dos yuppies dos anos 1980. Já um subproduto da cocaína - o "crack" - destruiu comunidades urbanas de negros americanos nosanos 80 e segue fazendo estragos nas grandes cidades de vários países, inclusive no Brasil.

Atualmente, o uso de cocaína está estreitamente associado a danos físicos e mentais. A curto e longo prazo, pode causar problemas cardíacos e de pressão arterial e causar danos a órgãos internos. Na pior das hipóteses, pode matar você. No momento, a produção e o uso ilegais de cocaína também estão aumentando em todo o mundo.

Mas uma coisa que pouca gebte sabe é que a cocaína sempre foi legalizada para uso médico e cirúrgico, mais comumente na forma de cloridrato de cocaína. Além de atuar como analgésico, é um vasoconstritor que ajuda a reduzir o sangramento. Por isso, ela ainda é usada em alguns tipos de cirurgia.

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Heroína, tosse e overdoses

O ópio tem sido usado para aliviar a dor desde que as pessoas descobriram como colher a seiva da papoula do ópio. No século XIX, produtos viciantes e potencialmente letais à base de ópio, como o láudano estavam amplamente disponíveis no Reino Unido, na Europa e nos EUA. A dependência do ópio também era um problema real.

Por isso, os cientistas estavam procurando alternativas seguras e eficazes para o alívio da dor e para ajudar as pessoas a curar seus vícios.

Em 1874, o químico inglês Charles Romley Alder Wright (1844-1894) criou a diacetilmorfina (também conhecida como diamorfina). A empresa farmacêutica Bayer achou que ela poderia ser útil em remédios para tosse, deu-lhe o nome comercial de Heroína e colocou-a no mercado em 1898. Ela piorava infecções no peito.

Allenburys Throat Pastilles
Foto: The Conversation
Allenburys Throat Pastilles continha heroína e cocaína.Seth Anderson/Flickr, CC BY-NC

Embora a diamorfina tenha sido criada com boas intenções, esse opiáceo era altamente viciante. Pouco depois de ter sido lançada no mercado, ficou claro que era tão viciante quanto outros opiáceos (https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/bulletin/bulletin_1953-01-01_2_page004.html). Isso coincidiu com movimentos internacionais para encerrar o comércio de opiáceos não médicos devido ao seu efeito devastador na China e em outros países asiáticos.

Assim como a maconha, a heroína rapidamente se tornou radicalmente chique. A máfia traficou para os EUA e ela se tornou popular na cena de jazz do Harlem, os beatniks a adotaram e muitos militares dos EUA voltaram do Vietnã viciados nela. A heroína também ajudou a matar cantores ícones da música norte-americana, como Janis Joplin, Jim Morrison e Jimmy Hendrix .

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Atualmente, sabemos que o uso e a dependência de heroína contribuem para uma série de problemas de saúde física e mental, bem como para a morte por overdose

No entanto, os danos relacionados à heroína estão sendo superados por poderosos opioides sintéticos, como oxicodona, fentanil e o grupo de drogas nitazeno. Na Austrália, houve mais mortes e internações hospitalares por overdoses de opiáceos prescritos do que por overdoses de heroína.

Em resumo

Nem todos os medicamentos têm uma história limpa. E nem todas as drogas ilícitas sempre foram ilegais.

O status legal das drogas e a forma como são usadas são moldados por fatores como política, racismo e normas sociais da época, bem como seu impacto na saúde.

The Conversation
Foto: The Conversation

Philippa Martyr não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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