O ministro da Justiça, Sérgio Moro, usou o caso do gângster Al Capone (1899-1947) para pedir ao presidente Jair Bolsonaro vetar a uma lei aprovada no Congresso que muda radicalmente os julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o chamado "tribunal" da Receita, e pode travar investigações. O chefe do Executivo tem até esta quarta-feira, 8, para decidir se mantém o dispositivo.
O Carf é o órgão que julga recursos de empresas e pessoas físicas que entram na mira da Receita Federal. Com a mudança na lei, em caso de empate nos julgamentos do conselho, a decisão será automaticamente favorável aos contribuintes. Atualmente, o voto decisivo pertence à presidência do colegiado - o chamado "voto de qualidade". Este cargo é obrigatoriamente ocupado por alguém do Fisco.
Além de Moro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) são contrários ao fim do voto de qualidade. Eles argumentam que a medida pode atrapalhar investigações da Lava Jato e comprometer a arrecadação de R$ 11 bilhões em processos da operação que poderão ser avaliados pelo Carf, na avaliação da Receita Federal.
"Como bem ilustrado na notória condenação de Al Capone a onze anos de prisão por sonegação fiscal, chefes de organizações criminosas, das mais variadas, e mesmo criminosos envolvidos em corrupção, só são punidos, por vezes, por condutas criminais acessórias e não pelos crimes principais", diz o documento assinado por Moro sugerindo o veto.
Citado pelo chefe da pasta, Al Capone é lembrado como um dos mais famosos chefes de máfia nos Estados Unidos e foi condenado em 1931 por sonegação de impostos. Depois disso, passou a ser investigado por uma série de crimes que envolviam homicídios, extorsões, sequestros e contrabandos.
Possíveis impactos na Operação Lava Jato
Levantamento da Receita Federal citado por Moro aponta que até janeiro 14 processos da Lava Jato terminaram com decisão a favor da Fazenda por voto de qualidade, totalizando R$ 1,09 bilhão. Na fila, estão outros processos com decisões de primeira instância desfavoráveis aos contribuintes em R$ 11 bilhões e que ainda poderão ser julgados pelo Carf e impactados pela mudança.
No despacho, Moro afirma ainda que "a constituição do crédito tributário é, por sua vez, fundamental para tipificação do crime contra a ordem tributária, com o que eventual fragilização do procedimento de formação tem, além de consequências na arrecadação tributária, efeito colateral negativo no combate ao crime em geral."
Aras também pediu a Bolsonaro para vetar o dispositivo. De acordo com o procurador-geral da República, o risco da medida é provocar questionamento sobre julgamentos anteriores. Como mostrou o Estadão/Broadcast na semana passada, auditores fiscais contrários à proposta citam um caso da Operação Lava Jato envolvendo o doleiro Alberto Youssef julgado pelo Carf em 2018 para pressionar pelo veto.
A autuação a Youssef na época por sonegação fiscal, fraude e conluio, argumentam, iria parar na gaveta se a medida estivesse em vigor. Em casos como esse, a representação só segue para o Ministério Público se a Receita mantiver a autuação. "É um exemplo de um notório fraudador que seria liberado das repercussões tributárias e penais decorrentes da autuação, se a nova regra estivesse vigente", afirmou o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco), Kleber Kabral.
O texto da MP está na mesa de Bolsonaro. O Planalto se manifestou favorável às novas regras de renegociação de dívidas, mas não garantiu se vai sancionar ou vetar o "jabuti" alvo de questionamento.
Mudança foi considerada 'jabuti' em MP
O trecho que acaba com voto de qualidade no Carf foi incluído por articulação de partidos do centrão da Câmara e mantido no Senado na Medida Provisória do Contribuinte Legal, assinada por Bolsonaro para regularizar dívidas com a União. A MP foi aprovada no fim de março.
O acréscimo foi classificado como um "jabuti" no texto pela Consultoria Legislativa do Senado. No jargão do Parlamento, o termo é usado quando há inclusão de temas considerados estranhos ao escopo de um projeto ou medida provisória. A existência de "jabutis" em medidas provisórias é considerada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2015.
O dispositivo teve apoio das lideranças do governo nas duas Casas e ainda foi defendido publicamente pelo senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio. "Eu acho que, raras vezes, nós veremos um chefe do Executivo abrir mão disso", afirmou o parlamentar durante a votação da MP. Ele se referia à previsão de queda na arrecadação.
De acordo com o levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, cerca de 7% dos processos são decididos por voto de qualidade. Mas esses são justamente os casos de maior impacto financeiro. Somente em 2019, foram mantidas em julgamentos com desempate R$ 27 bilhões em autuações da Receita Federal.
Defensores argumentam que a medida acaba com uma "caça às bruxas" na fiscalização tributária. "O contribuinte sempre está levando desvantagem no Carf. O País não aguenta mais, nem a classe que gera emprego e renda, passar por esses absurdos", disse o senador Vanderlan Cardoso (PP-GO) quando o texto passou no Senado.
No entanto, na avaliação do ex-juiz da Lava Jato e atual ministro da Justiça, o risco da medida é interromper as representações fiscais do Carf que dão origem a investigações em órgãos como Ministério Público e Polícia Federal. Com decisão favorável ao contribuinte, o processo é arquivado.